Reflexões sobre um epitáfio

Bem, ele esperava qualquer sensação asquerosa, nojenta, odiosa. Não a indiferença. O safado morreu. Desapareceu a bestial figura que, aproveitando da parentela, agiu pederestamente. Atitude, evidentemente, foi ocultada de todos; pelo monstro, por motivos óbvios, e, pela vítima, por medo da repercussão que esse fato traria.

Embora criança, na ingenuidade de seus poucos anos, desconfiava que aquilo que foi feito era muito feio, era muito grave. Ou porque a preocupação obsessiva do ‘tio’ em esconder o acontecido, em exigir o segredo, se tal coisa fosse normal?

Mas, enfim, ele está morto. A morte foi atroz, das mais dolorosas que a natureza pode oferecer a um corpo humano.

Não foi suficiente, porém, para condicionar um sorriso de satisfação no rosto da vítima. Não despertou nenhum sentimento de vingança, de justiça feita, a despeito dos anos e anos decorridos até então.

A ausência de qualquer manifestação de alegria estava em total sintonia com a indiferença sentida na alma.

Ele, o ‘tio’, simplesmente não mais existia no mundo corporal. Ele desapareceu, assim como sumia, em sua infância, os barquinhos de papel depositados na suave correnteza dos riachos no interior de Goiás. Não deixavam saudade, não faziam falta: o guri compreendia apenas que aquele era o curso natural das coisas da vida. Não mais via a pequenina nau de papel, e nenhuma preocupação aflorava. A natureza haveria de cuidar do destino do barquinho. O objeto flutuante só era “dele” enquanto a vista o discernisse. Se fizesse parte de “sua” paisagem, era seu. E sendo “sua”, a egoísta criança se importava, pois cuidava – e bem – daquilo que fazia parte de si.

O menino – agora ocupando uma forma humana com feições adultas – ainda especula o que poderia ser diferente se o safado não tivesse cometido tal torpeza. Seria menos tímido? Teria mais sucesso com as meninas na adolescência? Seria menos inseguro? Teria menos pudor em expressar seu pensamento, independente das pessoas que o cercam? Seria mais apegado a família? Seria menos emotivo e melancólico? Seria menos acovardado frente a dura realidade que aí está posta?

Absorto, pensa – um pouco frustrado – que tudo poderia ter sido diferente.

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