O tempo

Retilíneo, esgotável.

Passageiro, imutável.

À morte.

Vida que se esvai.

A realidade, aparentemente intensa, se encaminha para o ocaso.

É o crepúsculo de tudo.

Selvagem

A zebra estava ao longe, passeando faceira. O olhar do felino esteve atento. Seu ataque oferece pouca chance de defesa. Está claro para ele. Mesmo assim, o ritual necessita de mais atrativos. O leão quer resistência. Quanto mais dificuldade, maior o seu troféu. Quer se sentir de fato o rei da floresta. É importante que ela corra. Que ela se mostre convicta de que é possível se safar. Que reúna força suficiente para tentar escapar. Esse jogo atiça o felino. Frustrado ficaria se não houvesse oposição.

O homem que observava, de longe e protegido pelo veículo blindado do safári, ficou apreensivo. As parcas noções de biologia não o deixava otimista. De nada adiantava torcer pela zebra. Ela é presa. Está fadada a ser devorada – mais dia menos dia. O espetáculo não é nada excitante. Se sente enojado. Quando o leão se põe ao ataque, uma lágrima brota em seus olhos.

Há homens que não foram feitos para a dureza da vida. Há homens que, de tamanha covardia, sentem-se mais aconchegado na possibilidade da morte. Há homens que, criados na ideia de uma natureza harmônica, se impactam diante da crueza da vida selvagem. Não há espaço para romantismo na natureza. Não há espaço para generosidade.

Ele, o homem do safari, voltou pra casa diferente. Simpatizou-se cada vez mais com a ideia da morte como um descanso. Desistiu de viver. E teve consciência da morte aos poucos, gradual, dia após dia. À cada tarde, um dia a menos. A cada dia vivido, um passo a mais para a morte certa. Não sabia em qual instante, mas a sentia espreitando a cada esquina. A cada gole de água. A cada respirar ofegante.

E foi assim que ele conheceu um pouco de esperança. Às avessas, é verdade. Porque suas esperanças não se centravam na vida, mas na morte. A esperava como prêmio. Logo viria. Se mais cedo, melhor.

Entregou-se.

Sinais

Combinaram sinais de vida. Flashes de luzes na escuridão da noite. A alegria de ver qualquer comunicado foi substituída pela tristeza avassaladora do breu noturno. A noite o invadiu. Dessa vez, sem aviso de término. Sabia, em seu íntimo, que não mais veria a luz do sol.

Humanidade

Não era miragem. Era um oasis. Ao encontrar uma companhia, o jovem tuaregue se desfez de seu solitário sofrimento. Afinal, encontrou outra pessoa que padecia do mesmo infortúnio no deserto inóspito no qual transitava. A elevada temperatura durante o dia e o rigor do frio a noite persistiam, mas agora em dose suportável. Quando, porém, viu lágrimas correrem no rosto da jovem cabila, percebeu o quanto era carregado de desumanidade sua propria dor, porque banhada em angústia egoísta. “Sentir a dor do outro nos faz mais humanos”, pensava, enquanto a jovem chorava em seu colo. O soluço da cabila lhe carregou de dor o suficiente para esquecer de seus próprios problemas. Tanta dor se converteu em mais amor. Quando, depois de muito se debater, a jovem se entregou ao sono, o tuaregue sussurrou ao seu ouvido uma declaração de amor eterno.

Tradição

Alimaa sabia das regras da tribo. Dugar logo ia chegar. Ele não entenderia a displicência da esposa. O praavisan, uma variação local do Khuushuur, prato típico frito em óleo, deveria estar pronto à disposição do marido. Dugar ainda achava que era uma obrigação de toda mulher casada ao receber o marido no final do dia. Chimed, o pajem, considerava isso um absurdo. Esse costume há muito havia sido abandonado em outras famílias. A iguaria era preparada e servida considerando o desejo da esposa em também se alimentar ao lado do marido. Em outras tendas se servia praavisan de uma a três vezes por semana.

Chimed julgava ser uma tremenda estupidez a mulher servir-se de instrumento ao marido.

Dugar chegou e soube demonstrar seu desconforto. Disse que sabia o que aquilo significava: ela não se importava mais com ele. Esteve chateado durante toda a noite e o dia seguinte. Alimaa se condoeu. Procurou o marido, pediu perdão. Prometeu servir o praavisan sempre, tal qual rezava a antiga tradição. Dugar foi forte o suficiente para não dizer “eu te perdôo”. Seria uma fraqueza, uma declarada rendição aos encantos da mulher. Simplesmente a abraçou e, corpos colados, selaram o acordo de paz.

Na escuridão, Chimed tornou-se o primeiro homem feminista da história.

O gato

Era tratado como homem, mas não era homem.

~*~

O gato vivia por ali, manhoso. A esposa o amava, os filhos também. O marido o tratava com leniência. Tolerava-o, porque percebia que alegrava a casa. Achava, porém, que a esposa e os filhos gastavam muito tempo com o felino. Todavia, era discreto em seu crescente azedume.

~*~

Havia pouco tempo que tinha sido achado. Estranhamente, o gato parecia mais feliz quando não era bem cuidado. Às vezes, sem motivo aparente algum, se escondia atrás da porta. Se punha entre os de casa, chamando a atenção, mas ao menor sinal de que estava ‘sobrando’ por ali, se acabrunhava e fugia pra algum canto. Gato estranho.

~*~

Aquele gato sabia das coisas. Era parecido gente. Ficava em estado constante de vigilância. Tinha ciumes. Percebia quando era indesejado.

~*~

Certa vez, o gato teve um pesadelo. Sonhou que era segurado pelas costas por uma mão firme, enquanto a outra mão manejava um porrete que fazia uma parábola em direção a sua cabeça.

~*~

Depois do pesadelo, o gato achou melhor não frequentar a casa. Não achava meios de voltar à rua, seu antigo lar. Ficava por ali, no terreiro, olhando de soslaio. Quando as luzes se apagavam, ainda era possível escutar, de longe, o triste ronronado, misturado aos roncos e demais ruídos noturnos.

~*~

As crianças mal perceberam a mudança no comportamento do gato. Os adultos, sim. A esposa não quis demonstrar descontentamento, porque sabia a verdadeira opinião do marido sobre a concorrência de atenção em casa. E ele, o marido, já havia pensado, secretamente, em resolver a situação daquele gato atrevido e ousado, se não tivesse feito de lar o terreiro: um porrete em movimento de parábola.

~*~

Gato sortudo: foi avisado por um pesadelo.

Malandro

(…)

O público olhava admirado o trapo de homem que se contorcia em insistente tentativa de ficar de pé. As pernas trôpegas ameaçavam não sustentar o peso do esquálido homem. Bêbado, terrivelmente bêbado. O peso do mundo fora colocado em suas costas, embrulhado em sorrisos debochados, olhares de reprovação e murmúrios entre vizinhas fofoqueiras. Nem a solteirona por todos desprezada demonstrava compaixão. “Idiota, lá vai ele à procura da mulher que diz amar”. E ele a amava. Ela chegaria com o cheiro de outro homem. “Não importa, não importa”. O importante era ele a encontrar, deitar em seu colo e escutar a voz que tanto lhe acariciava o peito. Talvez ela esperasse por algum tapa, como se isso fosse a compensação por ter se entregado a outro homem, mas ele não era desses malandros que batem em mulher. Sustentava os vergões do seu opróbrio em sua própria carne. “Isso não é amor, é doença!”, diziam seus amigos. A impressão era que a dignidade e amor proprio diminuiam quanto mais crescia seus sentimentos por aquela mulher. Reduzia-se enquanto homem, enquanto ela era gentilmente colocada em pedestais cada vez mais elevados.

Era, sobretudo, um covarde.

A aposta na rua girava em torno de quanto tempo aquela linda, elegante e inteligente mulher toleraria um homem-banana, lacrimejante, sem brio. O que o pobre rapaz oferecia era um amor incondicional, algo de baixo custo em um mundo onde o desprezo, dialeticamente, exerce sedução, onde os ‘nãos’ são convites aos ‘sins”.

(…)

Fragmentos perdidos

Já tinha sido subtraído seu movimento das pernas. Os olhos foram dados como causa perdida mais recentemente. Desesperado, pensava: “tirem-me tudo, mas meu coração estará comigo para sempre”. E sempre, por óbvio, significava o fatídico dia em que perderia a consciência de si mesmo diante do mundo.

Dor

E o dono da botica imaginou que solucionaria uma dor com uma poção amarga mas supostamente eficiente – era, afinal, recomendada por autoridades no assunto de fármacos. Criou foi outra ainda mais forte, intensa e… Silenciosa.

Ator

Quem vê por além da máscara do laureado ator?

Seria sofrimento o sofrimento visto?

Seria alegria a alegria percebida?

As cortinas abrem e o simulacro desabrocha

Quem é o ator, quem é o ator?

Ninguém o vê… o deslumbre pelo personagem cega a platéia

Se finge tão bem dor, alegria, desconforto, regozijo…

Quem é o ator?

Qual conexão para a plateia perscrutar e mapear quem é o ator?

Não há, não há…

O ator se esconde de todos para que os personagens apareçam

E, como um bom poeta,

“Chega a fingir que é dor a dor que deveras sente”