A liberdade de decidir

Ainda lembro como hoje. A coordenadora levando todos os alunos, em fila indiana, para a sala de vídeo. Mal sabíamos o que se passaria. E assim, nessa inocência, tivemos nosso primeiro contato com a frieza – necessária até – do exercício médico. O vídeo era sobre aborto. A quantidade de sangue definitivamente me impressionou. Dali em diante, o molecote de quase doze anos teve uma outra relação com seu próprio sangue, capaz inclusive de desfalecer em uma simples transfusão. Aquele fato distante na infância, escondido sob o manto educativo, me marcou profundamente. Pelo medo, pelo terror, somente. Se o vídeo fosse sobre transfusão de orgãos traria a mesma sensação, obviamente.

Foi com a mesma surpresa que descobrimos, a uns três anos mais tarde, numa sombria manhã de junho, o falecimento de uma colega. Aborto mal sucedido. E lá estávamos nós, perguntando o porque daquilo tudo. Não suportando a expectativa da pressão familiar, sucumbiu-se nas mãos de espertalhões. Moralismo e educação terrorista nem sempre têm resultados desejados.

A respeito disso tudo, o direito das mulheres de decidir sobre a maternidade. Essa é a luta daqueles que almejam a descriminalização do aborto. Defender o direito ao aborto não é o mesmo que defender o aborto, muito menos estimular ou obrigar as mulheres a abortar, como bem ressaltou Alcilene Cavalcante. É, sobretudo, garantir a liberdade à maternidade e à vida a todas as mulheres. Ao Estado cabe zelar pela integridade da saúde da mulher. Nada mais ético e socialmente justo trocar a clandestinidade das clínicas açougueiras pela assistência médica em hospitais públicos.

Boa parte dos abortos clandestinos acontece em lares com pouca instrução sobre métodos contraceptivos. A expectativa de uma vida decente é mínima. Uma gravidez indesejada é resolvida, em muitos casos incidentes nas classes populares, com tradicionais ‘garrafadas’, chás à base de raízes. Comprimidos de permanganato de potássio (ou algum medicamento contendo o misoprostol como componente ativo) podem ser comprados, no mercado negro, a R$300,00. Talos de mamona são muito utilizados no meio rural. Agulhas de crochê ou qualquer outro objeto pontiagudo são instrumentos bastante preferidos nas cidades. Em qualquer situação, a vida da mulher corre seriíssimo perigo.

Os fundamentalistas religiosos, latentes nos grupos conservadores, ficam de cabelos em pé (sob a bandeira do direito à vida) ao imaginar os hospitais públicos fazendo aquilo que as clínicas particulares fazem sem o menor remorso. Esse grupo, especificamente, guarda ainda outra terrível incoerência. O apego às campanhas anti-aborto é tão tenaz quanto a simpatia pelas penas capitais. Isto é, do embrião – que tecnicamente ainda não é uma vida (é apenas um devir, uma possibilidade) surge um ser humano, vivo até entrar em descompasso com as regras sociais, quando menor infrator ou um adulto vagabundo. Aí, nesse caso, a mesma ética tortuosa diz despudoramente que a morte – por armas oficiais ou registradas no órgão competente – é merecida.

Assim como o Estado não tem prerrogativa na escolha de minha ou da sua religião, é de se entender que não é de sua competência o direito de interferir naquilo que é de foro mais íntimo da mulher: a liberdade de decidir sobre a maternidade.

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