Ruínas são rugas do passado no presente. São memórias que assolam o espaço, lembranças de um tempo que, há muito, já se foi. Projetam um estranho sentimento de estranheza ao visitante de áureos tempos, e uma falsa sensação de nostalgia ao neófito.
Em “Pietá” (Coréia do Sul, 2012) , uma árvore é plantada diante de um velho e abandonado edifício. É uma espécie de comemoração do reencontro entre Kang-do, um absurdamente solitário e violento cobrador de dívidas, e sua mãe, anos após o abandono materno. A velha construção, entretanto, é muito mais do que mero coadjuvante na cena. Embora não se torne onipresente no decorrer do filme, veremos, no final, que o plantio da árvore não poderia ser em outro lugar. Vingança e hostilidade se simbolizam nas ruínas, como monumental ódio e amargura que, para se consumarem, simulam-se doçura. O prédio é uma quase morte, posto que já não representa mais vida. Pouco importa as lembranças evocadas pelas paredes decadentes. Não há mais vida. Não há mais esperança. Em um percurso estranho, angustiante, passamos perplexos pela violência, amor, redenção e morte.
Mas nem sempre as ruínas são hostis ao estranho. São refúgios para os marginalizados, destituídos de qualquer esperança de um lugar salubre para chamar de lar. Em “Para sempre Lilya” (Suécia, 2002), a protagonista adolescente e seu amigo Volodya, de apenas doze anos, encontram abrigo em um predio abandonado na periferia de uma anônima cidade soviética (a gravação foi feita em Paldiski, cidade estoniana). É o lar de Volodya, depois de ser expulso de casa pelo pai alcoolatra. Volodya encontra em Lilya sua referência humana. Apaixona-se. Amor impossível, óbvio. Se o amor o anestesia da dor da vida, em Lilya a impulsiona para uma nova vida fora de seu país. A Suécia a esperaria para viver uma vida digna, junto ao “homem-que-se-importava-de-verdade-com-ela”. Ao se ver amarrada, na Suécia, a um esquema de exploração sexual, chega a vez de Lilya, agora também sem amor, se deparar com a crueza da realidade dura, violenta, sem alternativa à dor. O velho predio administrativo soviético em ruínas era, de fato, muito mais acolhedor e protetor do que qualquer esperança de uma vida decente. Volodya amava Lilya. Em Volodya estava, mais do que seu presente: estava seu futuro. O amor era vida.
Em Lilya, mais do que em Kang-do, a melancolia sai do personagem e toma todo o ambiente, em fluxo constante. As ruínas, antes uma espécie de conforto provisório, acabam sendo apenas a antesala da decadência da vida. Para Kang-do, as ruínas foram uma porta para a morte. Nesse mundo de muitos desejos e pouquíssimas realizações, o fardo do fracasso é observar as ruínas dos sonhos. Sonhos que se esfacelam aos borbotões. Estaria certa Luciana Berlinck (Melancolia: rastros de dor e de perda, p. 154), ao dizer que “se tudo é descartável e efémero, tudo se torna imediatamente ruína e a própria sociedade, imersa em ruínas, é melancólica. Eis porque o homem melancólico não é excepcional nesta sociedade, ele é o comum”? Sinceramente, não sei. Entretanto, ser “comum” já traz alguma esperança de normalidade.
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