Solidão

Há algo de pavoroso e fascinante na solidão.

Pavoroso porque a tendência, desde a infância, é encontrar o prazer da vida no contato com as outras pessoas – primeiro pais, depois o restante da família, pessoas da vizinhança, da cidade, etc, etc., em círculo cada vez mais amplo.

Fascinante porque talvez a única maneira de privar-nos da insatifação, da dor, da busca pela compreensão, esteja na silenciosa e pesada escuridão da solidão.

Enquanto nos equilibramos entre o pavor e o fascínio, saímos por aí tateando o gosto pela solidão e a quase obrigação da companhia.

É isso.

Malandro

(…)

O público olhava admirado o trapo de homem que se contorcia em insistente tentativa de ficar de pé. As pernas trôpegas ameaçavam não sustentar o peso do esquálido homem. Bêbado, terrivelmente bêbado. O peso do mundo fora colocado em suas costas, embrulhado em sorrisos debochados, olhares de reprovação e murmúrios entre vizinhas fofoqueiras. Nem a solteirona por todos desprezada demonstrava compaixão. “Idiota, lá vai ele à procura da mulher que diz amar”. E ele a amava. Ela chegaria com o cheiro de outro homem. “Não importa, não importa”. O importante era ele a encontrar, deitar em seu colo e escutar a voz que tanto lhe acariciava o peito. Talvez ela esperasse por algum tapa, como se isso fosse a compensação por ter se entregado a outro homem, mas ele não era desses malandros que batem em mulher. Sustentava os vergões do seu opróbrio em sua própria carne. “Isso não é amor, é doença!”, diziam seus amigos. A impressão era que a dignidade e amor proprio diminuiam quanto mais crescia seus sentimentos por aquela mulher. Reduzia-se enquanto homem, enquanto ela era gentilmente colocada em pedestais cada vez mais elevados.

Era, sobretudo, um covarde.

A aposta na rua girava em torno de quanto tempo aquela linda, elegante e inteligente mulher toleraria um homem-banana, lacrimejante, sem brio. O que o pobre rapaz oferecia era um amor incondicional, algo de baixo custo em um mundo onde o desprezo, dialeticamente, exerce sedução, onde os ‘nãos’ são convites aos ‘sins”.

(…)

Vazio

Existem vazios que, quando descobertos e plenamente percebidos, tornam-se ainda maiores, mais incômodos e progressivamente mais sufocantes.

Fragmentos perdidos

Já tinha sido subtraído seu movimento das pernas. Os olhos foram dados como causa perdida mais recentemente. Desesperado, pensava: “tirem-me tudo, mas meu coração estará comigo para sempre”. E sempre, por óbvio, significava o fatídico dia em que perderia a consciência de si mesmo diante do mundo.

Reciprocidade

Qualquer relacionamento, independente de sua natureza, exige reciprocidade para que seja durável. Alguns vêem nisso um pouco de mesquinhez, de grosseiro e vulgar interesse próprio. Ledo engano. Uma relação só se mantém às custas do interesse do outro, diariamente mantido. Mais comprometimento, mais desejo, mais entrega de uma das partes altera o prumo da embarcação, desequilibrando-o. A saída mais difícil é diminuir o peso — o interesse — para, dessa forma, reequilibra-lo; a mais simples, mais recorrente, mas também mais dolorosa, é pular do barco. Desequilíbrio condena qualquer bom projeto náutico. Não tarda a naufragar, caso haja insistência. Infelizmente.

Dor

E o dono da botica imaginou que solucionaria uma dor com uma poção amarga mas supostamente eficiente – era, afinal, recomendada por autoridades no assunto de fármacos. Criou foi outra ainda mais forte, intensa e… Silenciosa.

Saudade, por Gilka Machado

De quem é esta saudade
que meus silêncios invade,
que de tão longe me vem?
De quem é esta saudade,
de quem?

Aquelas mãos só carícias,
Aqueles olhos de apelo,
aqueles lábios-desejo…

E estes dedos engelhados,
e este olhar de vã procura,
e esta boca sem um beijo…

De quem é esta saudade
que sinto quando me vejo?

(in Velha poesia, 1965)

Ruínas

Ele era apaixonado por vestígios de vida. Procurava sentir as paredes antigas impregnadas do viver passado… Quantas alegrias, quantos sonhos, quantas amarguras… O viver humano condensado em memórias impressas nas paredes mortas, símbolo restante da pujante vida outrora existente.

Trinta anos depois, sua memória não tem o poder mágico de reviver as sensações vividas. As recordações não reconfortam, cortam. Elas preenchem de melancolia onde deveria haver apenas satisfação por tanta felicidade experienciada.

Ter memória pode ser um castigo.