A rainha e o elfo

A rainha temia pela escolha do elfo. “E se a floresta e o castelo se incendiassem ao mesmo tempo? Quem elfo salvaria?” Na inocência do amor em idade precoce, elfo desejaria salvar a todos.

Elfo mudou, rainha também.  Efeito do tempo, da solidão da floresta, do aconchego palaciano. O elfo preocupou-se muito mais com o bem estar da realeza. Mas a rainha também, procurando afastar qualquer centelha inflamável.

A rainha, antes carente da ação protetora do elfo, se protegeu de tal maneira que nenhum foco de incêndio foi detectado por anos. Enquanto a bela nobre se descansava, tranquila, o gélido coração do elfo se despedaçava, diariamente, ao olhar pro castelo feliz, colorido e musicado.

Hoje, elfo não teria dúvidas. Daria sua vida para salvar a vida da rainha. Mas, por essas tristes coincidências que não acontecem em um conto de fadas tradicional, a rainha não mais precisava da proteção de um elfo.

Solitário na floresta, elfo olha pela última vez a construção encastelada e, das margens da floresta, recua alguns passos rumo ao interior para, em semblante inescrutável, viver seu silêncio.

Silêncio

As palavras são um rio

Carregam sentidos só percebidos pelos ribeirinhos

No ruídos das águas

joão-zé-maria-fulano-de-tal captam significados

 

Tico-do-rio gostava das margens

D’onde apreciava as variações de timbres,

os chuás-chuás cadenciados

um lamento da natureza

 

Do silêncio Tico-do-rio não gostava

Não era fácil traduzir a mensagem

Da inaudita linguagem

Por poucos compreendida (por muitos condenada)

 

No meio da mata, longe das barulhentas águas

Não conseguia encontrá-lo

O ruído o perseguia

Entre assobios de sabiás e chocalhos de cascavéis

 

Dialética das dialéticas

O silêncio foi encontrado

No interior das massas de ruído

Corpo submerso no agora gélido ribeiro

 

Pulmão ardente

Tico-do-rio anseia pela vida

Para a dor, o silêncio é apenas pausa

Para a vida, é sobretudo caos

 

Pessimismo

Ele era tão pessimista que dava ao pessimismo outro nome: “realismo”. Ao contrário de todos os outros pessimistas que eu pude conhecer, ele não era um sujeito autodestrutivo, nem desejoso de que as coisas ficassem ainda piores. Vivia numa espécie de resignação quanto às desgraças que lhe ocorriam (como ocorrem com qualquer outra pessoa – ele não era nada especial). Combinava esse jeito estranho de ver a vida com uma singular melancolia: transformava as dores, as derrotas, os espinhos da vida, em algo mais fácil de conviver. E o que era melhor: não reclamava da vida.

Quando foi informado de um tumor no intestino – o que há muito já desconfiava – desenvolveu uma inusitada filosofia. Explicava que a melhor morte era aquela que a ele estava sendo aplicada: diferente de tantas outras pessoas, ele poderia se despedir da vida aos poucos. A dor era controlada por doses de morfina, e lembrava dos chineses que esqueciam de seus problemas no ópio. Não, ele não esquecia dos seus. Mas a letargia provocada pela morfina fazia mais agradável o seu adeus a esse mundo.

Dava-lhe certo prazer certificar-se da piedade de amigos ou do excesso de cuidado dos conhecidos. Era como se, a partir dali, fosse criada uma redoma com o intuito de bloquear qualquer sensação desagradável, como se a dor de sua doença fosse já a cota suficiente para qualquer humano suportar. Nada mais poderia lhe entristecer. Mas, qual, ele não estava triste! Entre cinismo e deboche sufocados, lá no fundo ficava pensando se era muito difícil as pessoas serem assim, tão prestativas, se não soubessem da sua morte anunciada.

E assim sua teoria de uma despedida feliz se converteu numa imperfeita cópia do que desejava. Não teve tempo de se despedir da vida como queria, porque seus amigos e conhecidos não mais o tratavam como um homem qualquer. Ele ansiava por outras dores: os personagens de contos de fadas que transformaram aqueles que o rodeavam não mais permitiram viver a vida na intensidade desejada. Desejava dores que morfina não ameniza.

E foi assim, pessimista com sua própria filosofia, que partiu desse mundo.

 

Preocupação

(…)

Silvia já havia pensado em algumas possibilidades. A vertigem do alto de um prédio de quinze andares não seria problema, mas não lhe fazia bem sequer o pensamento de como ficaria horrível sua imagem depois de uma queda dessas. Cortar os pulsos seria dramático demais, e não suportava tanto sangue. Vira também imagens de sufocamento e enforcamento; descartara de imediato.

Outra preocupação era com o sentimento dos outros. Não queria ninguém com o sentimento frustrante de “ah, eu poderia ter feito algo se ao menos soubesse que ela estava com idéias tão estupidas na cabeça”. Também não queria ninguém a menosprezando por ter desistido de tudo. Desejava, sim, que todos se sentissem chocados com sua partida mas que, decorridas algumas semanas, retomassem suas habituais, miseráveis e rotineiras vidinhas.

Pensava, então, em um simulacro. Ninguém precisava saber de como as coisas são. Ignorância às vezes é uma bênção, já havia lhe dito alguém certa vez. Não haveria explicação. Ninguém saberia de nada. O próprio legista ficaria em dúvida, assinalando “causa natural” na última ficha preenchida com seu nome no cabeçalho.

Animada, liga o laptop, abre o chrome e entra no google.

(…)

Inércia

Levanto cansado. Sei das mil e uma coisas ainda pra fazer. Tenho preguiça. Não dessa preguicinha de levantar os braços e dar gritinhos. Uma preguiça mórbida, que prende, que sufoca. Sair de casa é um problema; ficar em casa também é. Os problemas se avolumam. Mais e mais. Despersonalizo. Tento me “ver de fora”. Não vejo coisa boa. Estou preso. Amarrado. Acorrentado. Lágrimas saem? Uma ou outra vez. Vem a fome. A sede. Falta tudo. Mas está tudo ali, a um passo, a um braço de distância. Perto, mas sinto milhas e milhas de lonjura. Escrevo. Escrevo. E escrevo um pouco mais. Ah, aí sim. Alívio. Secando o rosto, endireitando o peito, aprontando-me para o job certeiro. Substituo a umidade das lágrimas pelo suor. E dá certo. Dois golpes no vazio, um acerto. Dois, um acerto. Sim, sim, sim. A preguiça foi. Mas, no fundo, me pergunto se sua ausência não é temporária. Embora saiba que sim, depreendo um esforço terrível para criar a auto-ilusão de que, finalmente, ela se foi – para sempre. E passo a contar os minutos. Eternos minutos. Bons minutos, suficientes para posteridade. “Não, preguicinha, não apareça mais. Vá embora para nunca mais voltar.”

Reflexões sobre um epitáfio

Bem, ele esperava qualquer sensação asquerosa, nojenta, odiosa. Não a indiferença. O safado morreu. Desapareceu a bestial figura que, aproveitando da parentela, agiu pederestamente. Atitude, evidentemente, foi ocultada de todos; pelo monstro, por motivos óbvios, e, pela vítima, por medo da repercussão que esse fato traria.

Embora criança, na ingenuidade de seus poucos anos, desconfiava que aquilo que foi feito era muito feio, era muito grave. Ou porque a preocupação obsessiva do ‘tio’ em esconder o acontecido, em exigir o segredo, se tal coisa fosse normal?

Mas, enfim, ele está morto. A morte foi atroz, das mais dolorosas que a natureza pode oferecer a um corpo humano.

Não foi suficiente, porém, para condicionar um sorriso de satisfação no rosto da vítima. Não despertou nenhum sentimento de vingança, de justiça feita, a despeito dos anos e anos decorridos até então.

A ausência de qualquer manifestação de alegria estava em total sintonia com a indiferença sentida na alma.

Ele, o ‘tio’, simplesmente não mais existia no mundo corporal. Ele desapareceu, assim como sumia, em sua infância, os barquinhos de papel depositados na suave correnteza dos riachos no interior de Goiás. Não deixavam saudade, não faziam falta: o guri compreendia apenas que aquele era o curso natural das coisas da vida. Não mais via a pequenina nau de papel, e nenhuma preocupação aflorava. A natureza haveria de cuidar do destino do barquinho. O objeto flutuante só era “dele” enquanto a vista o discernisse. Se fizesse parte de “sua” paisagem, era seu. E sendo “sua”, a egoísta criança se importava, pois cuidava – e bem – daquilo que fazia parte de si.

O menino – agora ocupando uma forma humana com feições adultas – ainda especula o que poderia ser diferente se o safado não tivesse cometido tal torpeza. Seria menos tímido? Teria mais sucesso com as meninas na adolescência? Seria menos inseguro? Teria menos pudor em expressar seu pensamento, independente das pessoas que o cercam? Seria mais apegado a família? Seria menos emotivo e melancólico? Seria menos acovardado frente a dura realidade que aí está posta?

Absorto, pensa – um pouco frustrado – que tudo poderia ter sido diferente.

Dilema

Pois vá.

Fuja.

Não olhe para trás.

Apague-me da memória.

O tédio lhe alcançará.

Volte.

Encontre-me.

Olhos-nos-olhos. Corpo-a-corpo.

Desejo. Viva lembrança.

Seu suspiro lhe denunciará.

O que é, o que é

O que é, pois,
o medo.

Tenta, razão,
senti-lo.

O que é, pois,
a ansiedade.

Tenta, razão,
compreendê-la.

O que é, pois,
a frustração,

Tenta, razão,
domá-la.

O que é, pois,
tudo isso,

senão um sinal
da vida humana,
demasiadamente humana.

Alvorecer

[larghetto stringendo, ré menor]

Nos dias de sombra
Coração contraído
Maltratado, indeciso
Luz? Jamais chega.

Nos dias de sombra
Coração acelerado
Preso a convenções
Muros intransponíveis.

[Vivace, rallentando, lá bemol maior]

Nos dias de luz
Cotidiano renovado
Graça e leveza.

Nos dias de luz
Cotidiano planejado
Segurança em ser-feliz.