Seus sentidos ainda acusavam o arrebatamento. A taquicardia continuava, a secura na boca permanecia. O coração, enganoso, equivocara-se. A água salgada do mar sugava seu corpo pouco hidratado. Os lábios estavam ressecados. Trêmulo sob efeito do calor escaldante, notara que a miragem havia desaparecida. “O arrebatamento de sentidos foi-se”, repetia, para si mesmo, em força e intensidade que só os loucos possuem. Agarrado a parte que restou do barco, singra ao sabor dos ventos, pouco se importando quanto ao destino final. Depois da ilusão terminada, familiariza-se, resignado, com o azul do céu, com o azul do mar. Blue sky, blue sea. Blue man.
Artes
Dúvida
Bento me segredou que ainda hoje não se dá bem com a dúvida.
Quatro, três, dois
O grito desesperador salta da garganta
Afastamento
Grito sufocado, silêncio impera
Desconhecimento
“Onde está a reflexividade do espelho?”
Olhar vazado
Espelho transparente
Da superfície calma do mar
Não viu o turbilhão nas profundezas
Sobre canções
Nossa vida tem uma trilha sonora. Por mais que gosto de Roy Orbison, não o ouço em qualquer ocasião. Penso que nosso estado de espírito exige, para cada momento, uma canção diferente. Não dá pra ouvir canções felizes e dançantes quando você está deprê, por exemplo.
Ramiro, o protagonista de “Todas as canções falam de mim” sabe bem o que isso significa. Depois de seis anos vivendo com Andrea, é obrigado agora a lidar com a ausência dela. Procura preencher o vazio com os amigos (que jamais o compreenderiam), com uma ou outra companhia feminina. Encontra mulheres mais lindas que Andrea, mais literárias (ele é apaixonado por livros – graduou-se em literatura – e Andrea é arquiteta).
Mas, poxa, não é Andrea.
O filme trata dessa difícil superação de um relacionamento que se acabou. Ramiro é a fotografia da melancolia. Passa noites olhando fotografias antigas, cartas e outros objetos que reativam a memória. Não sabe o que fazer com a ausência de Andrea. Para muitos, Ramiro é um estúpido. “Ora, com tantas mulheres nesse mundo, porque sofrer por uma?”.
A beleza de tudo está na sensibilidade de Ramiro: ele reconhece na intimidade vivida com Andrea a fonte de sua completude enquanto homem. E a intimidade, nesse caso, nada tem a ver com sexo; afinal, são muitas as mulheres que passam por sua cama depois de Andrea e ele não se ‘conecta’ a nenhuma delas.
O filme é pontuado por frases belíssimas. O que dizer de “Nada deprime mais uma pessoa apaixonada do que ser feito de idiota. O que significa, lembrar-lhes que estão num jogo. Embora a seriedade do jogo possa machucar para a vida toda”? E as canções? O narrador já adverte que, quando apaixonado, tendemos a gostar de canções que até então nos parecem ridículas. Mas lá estão elas, pra dar vazão ao desconforto acumulado…
As canções selecionadas (e os trechos de livros citados – Kundera e Pizarnik, sobretudo) são uma grandeza a parte.
“Cantarei o que quero/Calarei enquanto bebo./E se for para esquecer/ou para revelar secredos/melhor, melhor calar”.
Se posso me manifestar contra algo desse bonito filme, é o tal paradoxo da nostalgia:
“Quanto mais vasto o tempo que deixamos para trás, mais irresistível é a voz que nos convida ao retorno. Essa frase parece evidente, e no entanto é falsa. O homem envelhece, seu fim se aproxima, os instantes se tornam cada vez mais preciosos e ele não tem tempo a perder com suas lembranças.”
Como assim? Instantes preciosos? Não ter tempo a perder com lembranças? Há espaço para outra coisa mais sensata que não ter uma velhice vivida sob um hedonismo rasteiro? Tantos tempos acumulados pra serem jogados no lixo em função de uma nova experiência que se avizinha? Não, não e não.
Quando estiver velho, quero me afogar em lembranças.
“Vamos ser altruístas?” Donnie Darko e o supremo amor
É difícil classificar Donnie Darko (2001) em algum gênero fílmico. É drama, é romance, há um pouco de suspense psicológico. Entretanto, é sobretudo ficção científica – o que descobrimos somente após decorrida a primeira metade do filme. Hawking, teoria das cordas, dimensão paralela… tudo isso e muito mais permeiam as explicações, no filme, para viagem no tempo-espaço.
Atraído por uma sinopse que declarava a proeminência da fantasia na realidade de Donnie, descobri um filme para além disso: complexo, com uma narrativa composta de fragmentos e repleta de pequenas explicações que só farão sentido quando, depois dos créditos aparecerem na tela, o expectador monte sua própria compreensão sobre.
A atuação de Jakes Gyllenhaal é incrível. Ali está a estranheza, o desconforto e a melancolia que caracterizaria, ao primeiro olhar do expectador, um sujeito esquizofrênico. A figura surreal de um coelho gigante interagindo com Donnie fortalece a sensação de algum tipo de delírio mental.
Escolhida criteriosamente, a trilha sonora é “quase-protagonista”. É responsável por acentuar o clima sombrio e nostálgico do filme. Dá vontade de “morar no filme”. A versão de Head Over Heels (Tears for Fears) especialmente gravada para o filme é um primor – embora, pareça, seja criticada por fãs da dupla britânica.
O aparente desequilibrio emocional de Donnie esconde uma profunda genialidade. Sua capacidade de entrega é sublime. Assim, não importa desanuviar minha dor naqueles que amamos. Isso é sobra de egoísmo. O que devo fazer é o possível para não transferir minhas angústias ao outro. O altruísmo de Donnie, ao provar seu amor pela família e namorada, o transforma em um pequeno diamante no meio de uma massa disforme de cascalho. “Eu seria capaz de fazer o que Donnie fez?” é o que me perguntei, ao terminar o filme.
Altruísmo é isso: ver na felicidade do outro a razão de sua vida.
Diálogo top-top:
Donnie: “Por que você usa essa fantasia idiota de coelho?
Coelho: “Por que você está vestindo essa fantasia ridícula de homem?”
Esquecimento
Uma reflexão so
bre a velhice, sobretudo. É esse o maior trunfo do “E se vivêssemos todos juntos”, filme francês de 2009 com Jane Fonda e Geraldine Chaplin no elenco. Sobra sensibilidade na tela para abordar os dilemas da velhice. É, também, um libelo à amizade. Retratando bem as contradições da natureza humana, da metade do filme para o final segredos são revelados e a história (turbulenta, as vezes) dos amigos é revelada. A cena final é tocante: o esquecimento colabora para que a dor seja diminuída. Talvez seja essa a maior vantagem da memória titubeante no final da vida.
Boneca inflável
Ela se julgava boneca inflável. Não era. Imaginava que se comportava como, mas seu dono estava possuído por fantasias. Ela correspondia, voluntariamente ou não, aos estímulos recebidos. “Sou uma boneca, eu sou”, insistia. Indiferente, o proprietário se desmanchava em prazer. Não, não era uma boneca inflável. Bonecas são estáticas, frias. Bonecas não seduzem e não são seduzidas. Bonecas não reagem a estímulos. Bonecas não convencem seus amantes de que não são bonecas.
~*~
“Boneca inflável” (2009) é um filme japonês aparentemente despretensioso. Carregado de metáforas, é uma história surreal de uma boneca inflável. É uma verdadeira poesia em imagens. Reflexão sobre os limites da solidão e da efemeridade da vida, “Boneca inflável” não permite indiferença a quem assiste. Única ressalva ao final bizarro, que assusta quem não é familiarizado com o cinema japonês.
A queda
Dublê de Anjo (The fall), 2009
Roy, perna quebrada, dublê. Alexandria, braço fraturado, orfã de pai. Os dois se encontram em algum hospital de Los Angeles dos anos 1920. Uma fantasiosa história prende a menina ao estranho. É um encanto tipo Shaherazade: Roy mantém a menina conectada para, ao longo da história, usá-la pra roubar remedios. Roy vinha de uma tentativa frustrada de suicídio.
O filme tem cenas belíssimas apresentadas logo no seu início. As histórias contadas por Roy, então, está repleta de imagens de encher os olhos. Histórias, aliás, que são um luxo a parte. Entretanto, e não muito tarde, Alexandria percebe a angústia do contador de história: ele é incapaz de dar um final feliz a narrativa. Roy havia desistido da vida.
É interessante perceber, pelos olhos da criança, como precisamos de sonhos, de histórias que tenham um final feliz. Os adultos perdem essa capacidade com o passar dos anos. As crianças podem nos ensinar o que já há muito desaprendemos: a fantasia não se opõe à realidade. A fantasia é parte da realidade.
Luz, silêncio!
–> “Luz silenciosa” é um aclamado filme do diretor mexicano Carlos Reygada.
–> A história se desenrola numa pequena comunidade menonita no norte do México.
–> Johan, o protagonista, casado e pai de cinco (ou seis, ou sete, não me lembro mais) filhos, se deprime ao descobrir-se apaixonado por outra mulher.
–> O silêncio predomina no filme. Longas tomadas em que, desativado o silêncio, fica o agressivo barulho das máquinas ou dos animais domésticos.
–> O filme é de uma poesia estranha, uma espécie de poesia-que-não-quer-ser-poesia. O longo beijo entre Johan e sua amante não é explosivo, não é luminoso. A dor substitui o calor da paixão.
–> Frase bárbara do filme: “a paz é mais forte que o amor”.
“A paz é mais forte que o amor”. Estaria Marianne, a amante, correta? Para a resignada comunidade menonita, sim, a paz era mais importante que qualquer arroubo juvenil. Na espiritualidade fechada e reclusa dos menonitas, o amor de Johan era pecado. Johan, imerso em culpa, não consegue se livrar da amante e nem ficar longe da família. Choros convulsivos comprovam sua dor. A bucólica comunidade se torna sufocante e faz de Johan um pária, um estrangeiro, um alienígena em seu próprio chão. O tempo é uma bela metáfora: assim como o alvorecer e o anoitecer pontuam o inicio e o final do filme, seu desenrolar se dá sincronizado às quatro estações: da paixão primaveril de Johan ao rondar invernal da morte. Personagens demasiadamente humanos marcam essa história que, ao final, traz algo de sagrado em meio a tanta culpa pelo amor alçado a profanidade. Para assistir outra vez.
Medo
Tenho medo das soluções definitivas para problemas temporários.

