Em tão pouco tempo, o brasileiro médio deu-se por especialista em política. O confuso e embaçado lodo político nacional pareceu, como um estalo, claro ao Tião da Borracharia, a Dona Ivone da Biscoitaria e ao Alemão do Caminhão.
Convenhamos: nunca antes na história desse país o debate entre esquerda e direita tornou-se tão popular. E simples. Simplório. Reconheceram a direita em um mito. Afastou-se do mito, passa para condição de esquerda – e geralmente tida como sinônimo de comunismo.
Assim, tornou-se popular a ideia de que até 2018 o Brasil foi governado pela esquerda – com exceção do breve período em que os milicos mandaram (e desmandaram) no país.
Talvez haja alguma bondade por esses especialistas na análise do Império – o saudoso império – posto ao chão pelos golpistas arruaceiros liderados por Deodoro, em 1889, o responsável pela inauguração do caos.
O positivismo, o mal da república, destruiu o Brasil e foi a semente do amplo e irrestrito “domínio esquerdista”.
Comunistas! Floriano Peixoto, Afonso Pena, Getúlio Vargas (o maior deles!), JK, Jango (o segundo!)… Maldita “herança marxista”!
Não fosse a “Gloriosa Revolução de 1964” e a consciente e patriótica eleição de 2018, o Brasil estaria pior que Cuba – dirão.
Ver analistas desse nível batendo cabeça na internet a respeito do complexo conflito entre Rússia e Ucrânia é a coisa mais óbvia do mundo. Estão lendo com lentes de formiga um fenômeno digno de rinha de elefante.
Mas o que dizer de gente que, em tese, são mesmo especialistas porque vivem, transpiram, suam, falam e escrevem sobre política, profissionais militantes geralmente a soldo de partidos e causas ideológicas em mesma situação?
Os partidos de esquerda não tardaram em manifestar-se. Aqueles mais à esquerda, viúvos da guerra-fria e saudosos daquilo que não viveram, adiantaram o apoio ao autocrata Putin.
No geral, argumentam que os russos reagem a agressiva ampliação do imperialismo burguês capitaneado pelos Estados Unidos na ultrapassada e anacrônica Organização do Tratado do Atlântico Norte.
Uma idiotice, porque Putin também representa claramente uma geopolítica com toques imperialistas e conveniente aos bilionários russos. E cá entre nós: o sinistro ex-espião da antiga e temida KGB soviética nada se importa com causas operárias que povoam o discurso de militantes de esquerda. Putin despreza Lênin.
Já à direita, nada muda. O bate-cabeça permanece. Enquanto alguns comemoram a vitória de Putin contra os globalistas (representados pelos Estados Unidos/Biden e União Europeia), outros enxergam em Putin um comunista que quer restaurar a União Soviética subjugando a Ucrânia.
Tempos confusos esses.
A guerra deveria ser percebida como deplorável à direita, quando o cidadão alheio aos conflitos perde seu bem mais valioso – a vida – e à esquerda, quando é sacrificada no altar do conflito a classe trabalhadora. Morrem civis que não conseguiram fugir da cidade atacada, morrem soldados de baixa patente que estão na frente da guerra – pouco importando que cores ostentam em seu uniforme. “Carnes desvalorizadas no mercado” tombam rumo a putrefação; sonhos, amores, projetos futuros desaparecem nos escombros. Às mentes psicopatas, confortavelmente instaladas em seus gabinetes, até pode restar a sensação e a adrenalina de um jogo. Para nós, o restante do mundo, o mais óbvio e natural deveria ser o mais intenso, vívido e explosivo horror.
Entusiasmar-se pela guerra é desumanizar-se.


