A dor

Fininha, boba, coisinha-a-toa. Aquela dorzinha que, do nada, aparece fazendo graça. Por ninguém se importar, ela se aloja, toda faceira. E permanece, indefinidamente, até criar coragem de se agigantar. Daí não adianta fingir que ela não existe; ela lá está para, aos soluços, nos lembrar que está a tomar conta, como ferida gangrenada em estágios finais.

O palhaço esquece do riso, mas não da máscara. Esquece de si próprio no espelho; ao público, sua aparência de longe engana a todos – mas não aqueles que gostam do palhaço, que o admiram, que convivem com ele.

No extenso, longo, tortuoso e desesperançoso picadeiro, se propõe, com o sorriso desenhado por tinta forte no rosto, a fazer as pessoas felizes, entendendo que, se as pessoas tem uma função e vocação nesse mundo, a dele é fazer os outros gargalharem despreocupadamente.

Tiquim

Não careço de patuá – dizia João José de Jesus dos Santos, vulgo Tiquim. Com nome sacrossanto desse, de patuá não necessitava mesmo. Já o apelido dizia respeito ao seu porte, trisco-de-gente exemplar. A frase saía comumente em situações que o falante se encontrava xumbregado e todo empachado. Com pandu cheio, bom era desaconfronchegar: a mente ficava fuá, descontrolava-se na sebereba e obiadeira era o resultado certo. O zuretado raparigueiro tinha sempre como companhia Corisco, um cavalo que seu sogro lhe presenteara – meio a contragosto, já que o genro havia casado na igreja verde. O azogado animal logo cumpriu um desejo do sogro, deixando Tiquim caxingando pelo resto da vida. O monumental coice na canela foi dado quando o pobre homem caqueava o arreio no embeiço de fronte a tapera. Dizia que era coisa de terecô só pra não bater canela na suça. Trololó que estava, quis botar canga com um chute no animal, veja só a falta de sabença. E, todos sabemos, quem deve desarnar é o peão, não o potro. Mas sabença faltava ao Tiquim. Todavia, no final das contas, todo mundo reconhecia que o homem era dozento de fina fruita, reconhecido em qualquer biboca.

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Separação

De longe as lágrimas do senhor eram imperceptíveis. Um cachorro de cor amarelada lhe acompanhava, ao lado, sem nenhuma necessidade de ter como guia aquele que o conduzia. Caminhavam com marchar firme, embora lento, parecendo saberem detalhadamente o caminho que percorriam. Ilusão: a tristeza estampada no olhar do senhor assim dizia, embora não compreendida pelo cão, feliz em seu andar soberbo. O homem pára e, com as mãos trêmulas, desata a coleira do animal. Com os movimentos da cauda acelerados, o cachorro ignora seu destino. Soluçando, o velho acena para o primeiro táxi que passa e, sem olhar para trás, parte aparentemente sem rumo.

Filho, não desista

Certo, queridinho, o mundo é feito de guerras, miséria e muita desilusão.

Correto, filhinho, as tragédias são muitas e podemos fazer tão pouco.

Isso, meu pequeno, há poucos ricos controlando tudo e muitos homens e mulheres desesperados em busca de migalhas.

Mas, filhinho, seu papai estará aqui para te ajudar e apoiar em tudo. Seus sonhos serão meus; suas tristezas também serão minhas.

Filhinho, não desista: seu pai está contigo!

Historinha verde-amarela de natal

Papai-noel substituiu o vermelho por outra cor, indefinida, para proteger sua identidade. O calor excessivo lhe impediu de usar as renas. O andar constante desse fim de ano fez desaparecer sua enorme barriga. Isso foi bom, uma vez que, no Brasil, não há tantas chaminés confortáveis. O acesso a casa foi mais difícil. Depois de muita vigilância, descobrir os momentos de ausência do vigia (com seus expedientes ocasionais…), driblar cercas elétricas, isolar o cão da família. Vencido os obstáculos iniciais, papai-noel abandonou a doçura. [‘Brasileiro não facilita pra gente’ é uma de suas queixas mais comuns ouvidas do seu enorme depósito de presentes.] Do seu saco quase vazio, retirou uma serra, quebrou todos os vidros da janela da cozinha e pôs-se a cortar as barras de metal. Ágil, conseguiu abrir passagem em pouco menos de quinze minutos. Dentro da casa, não encontrou nenhum presente no saco, amaldiçoando a incompetência de seus auxiliares. Apurou o olhar e não viu, no entanto, sequer árvore de natal para depositar os presentes. ‘Que falta de espírito natalino’, pensou, mais consolado. Preocupou-se, por um momento, com o saco vazio. De repente, em um estalo, uma idéia lhe apareceu. Inconformado por não ter pensado nisso antes, começou a recolher objetos de valor (e carregáveis). E assim termina a história, com a inusitada transformação de papai-noel em um estranho Robin Hood – que surrupia dos pobres para vender para pobres. A preços módicos, evidentemente.

~*~

Bem que poderia ter deixado meu saxofone e minha coleção de DVD’s.

Gatunagem

1997. Finalzinho de expediente, lá pelas tantas da madrugada. Eu estava particularmente tenso no meu primeiro emprego. Não era para menos; na semana anterior, havia passado pelo primeiro e único assalto sofrido até hoje. Na ocasião, levaram uma moto e todo o dinheiro do dia.

Já na hora de recolher as mesas e as cadeiras, um grupo dobrou a esquina e se dirigiu ao bar. Desconfiado, o chefe me pediu pra ficar de olho. Enquanto limpava as mesas no salão interno, todos os sentidos buscavam algum movimento suspeito.

Depois de algum tempo acostumando com o gralhar dos rapazes, desapercebi da vigília. De repente, o barulho do bando foi sucedido pelo silêncio da madrugada. Olhei pra fora, o grupo havia ido embora. Alívio.

Se eles não tivessem carregado a mesa e algumas cadeiras, a suspeição teria sido apenas fruto do trauma anterior.

Decepção

Imaginava que o ambiente seria sombrio, fedorento. Não era nada disso. Limpo, com boa luminosidade, arejado.

Os ‘entrevistadores’ eram três. Um homem, duas mulheres, uma delas em pé, fumando um cigarro.

O homem era extremamente silencioso. Óculos fundo de garrafa, braço sustentando o queixo. Se estivesse pensando, certamente não seria sobre os fatos que ali sucediam. Estava longe, distante.

Elegância era a primeira palavra que vinha a cabeça para qualificar aquela que parecia ser a líder dos trabalhos. Com ligeiro sotaque francês, mantinha um ar empertigado, formal. ‘É com ela que devo ter maior cuidado’, pensou. ‘Ela que decidirá meu futuro’.

As perguntas se sucediam. E, estranhamente, nada de coação. Nenhum instrumento de tortura. Nenhum elemento que indicasse o interesse dos entrevistadores em deixá-lo no calabouço.

Depois de cinco minutos, o homem se mantinha na mesma posição. A ‘francesinha’ demonstrava a mesma inquirição mecânica. E a fumante – uma senhora obesa em roupas coloridíssimas – já estava terminando o segundo cigarro, sem dizer uma única palavra.

Foi aí que ele percebeu que sua estadia na prisão não era desejada. A líder deu uma pausa. Pigarreou, virou-se para seu colega míope-estrábico, retirando-o da mais profunda resignação:

– Esqueci alguma pergunta?
– Não… – meio que se refazendo do susto.
– Então – voltou-se para o moço – volte para prisão.

Assustadoramente desesperado, o rapaz saiu lentamente da sala.

(In)fidelidade

Marido
Pela primeira vez, depois de seis anos, desconfiou da esposa. Já escutara diversos casos de traição virtual – muitos deles culminando com infidelidade no mundo real. “Será? Eu, trabalhando, e ela aqui, me traindo?” As provas estavam ali: uma dúzia de fotos do ‘outro’ recebida pelo MSN e arquivada no PC. Seria esse o salário de sua incondicional fidelidade?

Esposa
Depois disso, nada mais lhe assustaria. Era uma evidência da impossibilidade de conhecer o outro, pensava. Essa paixão do marido por computador – regada por horas e horas frente ao monitor – estava explicada. As provas não mentiam: após seis anos de felicidade, descobre que o marido é gay. Ou o que justificaria a presença de uma dúzia de fotos de um rapaz desconhecido em poses provocantes no PC?

Cunhada
Distante mais de cem léguas dali, a cunhada relembrava, languidamente, das peripécias realizadas nas férias, passadas na casa da irmã. Lá, via MSN, percebeu o quanto a tecnologia aproxima as pessoas. E sim – ele era lindo – como uma dúzia de fotos comprovava.

Filhos

Era médico, como o Roberson. Vivia nos dourados anos cinqüenta – que no interior de Goiás não eram tão glamourosos assim. Aos quarenta e cinco anos, Isaque contabilizava nove filhos. Como único médico da região, muito trabalhava – apesar da concorrência quase desleal das parteiras e curandeiros.

Sua casa não era muito luxuosa. Mas para os padrões da cidade, uma mansão. A moradia era bem localizada: de frente a praça matriz, local preferido da criançada para as brincadeiras.

De tardezinha, a molecada só parava a algazarra quando dona Ciana, a esposa do clínico, convidava toda a gurizada para se deliciarem com os açucarados nhoques acompanhados pelo suco de limão. E lá ia o bando – quase a metade sangue de Ciana.

Vez por outra, Isaque chegava junto com a dispersão dos coleguinhas de seus filhos. Ciana era danada de prevenida. Sabia que o marido chegava quase sempre cansado – e queria poupá-lo de inconvenientes. Depois dos quarenta, o marido começou a reclamar de leves enxaquecas após os expedientes – o que Ciana não conseguia entender, pois para ela médicos sempre deveriam estar com saúde.

Em um desses dias de forte dor de cabeça, coincidiu de entrar pela sala enquanto Ciana oferecia as saborosas quitandas aos moleques, sentados em torno de uma pequena mesa. Desabou no sofá, fechou os olhos, esfregou as mãos na têmpora, e assim ficou durante vários minutos.

Quando abriu os olhos, a criançada continuava sentada à mesa. Na bandeja de nhoques só havia farelinhos. Mas a jarra de suco ainda tinha o suficiente para encher meio copo. Levantou do sofá, parou próximo a mesa, encheu o copo e sorveu de um só gole o suco.

Arrumou um jeito de sentar perto da esposa. Frente a ambos, um dos meninos abaixou a cabeça assim que Isaque lhe firmou o olhar.

Olha, menino – falou firme – já está tarde, está passando de hora de você ir para sua casa.

Isaque – foi a resposta murmurada e surpresa da esposa – esse é o João Manoel, o nosso caçula!