Pessimismo

Ele era tão pessimista que dava ao pessimismo outro nome: “realismo”. Ao contrário de todos os outros pessimistas que eu pude conhecer, ele não era um sujeito autodestrutivo, nem desejoso de que as coisas ficassem ainda piores. Vivia numa espécie de resignação quanto às desgraças que lhe ocorriam (como ocorrem com qualquer outra pessoa – ele não era nada especial). Combinava esse jeito estranho de ver a vida com uma singular melancolia: transformava as dores, as derrotas, os espinhos da vida, em algo mais fácil de conviver. E o que era melhor: não reclamava da vida.

Quando foi informado de um tumor no intestino – o que há muito já desconfiava – desenvolveu uma inusitada filosofia. Explicava que a melhor morte era aquela que a ele estava sendo aplicada: diferente de tantas outras pessoas, ele poderia se despedir da vida aos poucos. A dor era controlada por doses de morfina, e lembrava dos chineses que esqueciam de seus problemas no ópio. Não, ele não esquecia dos seus. Mas a letargia provocada pela morfina fazia mais agradável o seu adeus a esse mundo.

Dava-lhe certo prazer certificar-se da piedade de amigos ou do excesso de cuidado dos conhecidos. Era como se, a partir dali, fosse criada uma redoma com o intuito de bloquear qualquer sensação desagradável, como se a dor de sua doença fosse já a cota suficiente para qualquer humano suportar. Nada mais poderia lhe entristecer. Mas, qual, ele não estava triste! Entre cinismo e deboche sufocados, lá no fundo ficava pensando se era muito difícil as pessoas serem assim, tão prestativas, se não soubessem da sua morte anunciada.

E assim sua teoria de uma despedida feliz se converteu numa imperfeita cópia do que desejava. Não teve tempo de se despedir da vida como queria, porque seus amigos e conhecidos não mais o tratavam como um homem qualquer. Ele ansiava por outras dores: os personagens de contos de fadas que transformaram aqueles que o rodeavam não mais permitiram viver a vida na intensidade desejada. Desejava dores que morfina não ameniza.

E foi assim, pessimista com sua própria filosofia, que partiu desse mundo.

 

Boneca inflável

airdoll

Ela se julgava boneca inflável. Não era. Imaginava que se comportava como, mas seu dono estava possuído por fantasias. Ela correspondia, voluntariamente ou não, aos estímulos recebidos. “Sou uma boneca, eu sou”, insistia. Indiferente, o proprietário se desmanchava em prazer. Não, não era uma boneca inflável. Bonecas são estáticas, frias. Bonecas não seduzem e não são seduzidas. Bonecas não reagem a estímulos. Bonecas não convencem seus amantes de que não são bonecas.

~*~

“Boneca inflável” (2009) é um filme japonês aparentemente despretensioso. Carregado de metáforas, é uma história surreal de uma boneca inflável. É uma verdadeira poesia em imagens. Reflexão sobre os limites da solidão e da efemeridade da vida, “Boneca inflável” não permite indiferença a quem assiste. Única ressalva ao final bizarro, que assusta quem não é familiarizado com o cinema japonês.

A queda

duble de anjo

 

Dublê de Anjo (The fall), 2009

Roy, perna quebrada, dublê. Alexandria, braço fraturado, orfã de pai. Os dois se encontram em algum hospital de Los Angeles dos anos 1920. Uma fantasiosa história prende a menina ao estranho. É um encanto tipo Shaherazade: Roy mantém a menina conectada para, ao longo da história, usá-la pra roubar remedios. Roy vinha de uma tentativa frustrada de suicídio.

O filme tem cenas belíssimas apresentadas logo no seu início. As histórias contadas por Roy, então, está repleta de imagens de encher os olhos. Histórias, aliás, que são um luxo a parte. Entretanto, e não muito tarde, Alexandria percebe a angústia do contador de história: ele é incapaz de dar um final feliz a narrativa. Roy havia desistido da vida.

É interessante perceber, pelos olhos da criança, como precisamos de sonhos, de histórias que tenham um final feliz. Os adultos perdem essa capacidade com o passar dos anos. As crianças podem nos ensinar o que já há muito desaprendemos: a fantasia não se opõe à realidade. A fantasia é parte da realidade.

Luz, silêncio!

–> “Luz silenciosa” é um aclamado filme do diretor mexicano Carlos Reygada.

–> A história se desenrola numa pequena comunidade menonita no norte do México.

–> Johan, o protagonista, casado e pai de cinco (ou seis, ou sete, não me lembro mais) filhos, se deprime ao descobrir-se apaixonado por outra mulher.

–> O silêncio predomina no filme. Longas tomadas em que, desativado o silêncio, fica o agressivo barulho das máquinas ou dos animais domésticos.

–> O filme é de uma poesia estranha, uma espécie de poesia-que-não-quer-ser-poesia. O longo beijo entre Johan e sua amante não é explosivo, não é luminoso. A dor substitui o calor da paixão.

–> Frase bárbara do filme: “a paz é mais forte que o amor”.

 

“A paz é mais forte que o amor”. Estaria Marianne, a amante, correta? Para a resignada comunidade menonita, sim, a paz era mais importante que qualquer arroubo juvenil. Na espiritualidade fechada e reclusa dos menonitas, o amor de Johan era pecado. Johan, imerso em culpa, não consegue se livrar da amante e nem ficar longe da família. Choros convulsivos comprovam sua dor. A bucólica comunidade se torna sufocante e faz de Johan um pária, um estrangeiro, um alienígena em seu próprio chão. O tempo é uma bela metáfora: assim como o alvorecer e o anoitecer pontuam o inicio e o final do filme, seu desenrolar se dá sincronizado às quatro estações: da paixão primaveril de Johan ao rondar invernal da morte. Personagens demasiadamente humanos marcam essa história que, ao final, traz algo de sagrado em meio a tanta culpa pelo amor alçado a profanidade. Para assistir outra vez.

Preocupação

(…)

Silvia já havia pensado em algumas possibilidades. A vertigem do alto de um prédio de quinze andares não seria problema, mas não lhe fazia bem sequer o pensamento de como ficaria horrível sua imagem depois de uma queda dessas. Cortar os pulsos seria dramático demais, e não suportava tanto sangue. Vira também imagens de sufocamento e enforcamento; descartara de imediato.

Outra preocupação era com o sentimento dos outros. Não queria ninguém com o sentimento frustrante de “ah, eu poderia ter feito algo se ao menos soubesse que ela estava com idéias tão estupidas na cabeça”. Também não queria ninguém a menosprezando por ter desistido de tudo. Desejava, sim, que todos se sentissem chocados com sua partida mas que, decorridas algumas semanas, retomassem suas habituais, miseráveis e rotineiras vidinhas.

Pensava, então, em um simulacro. Ninguém precisava saber de como as coisas são. Ignorância às vezes é uma bênção, já havia lhe dito alguém certa vez. Não haveria explicação. Ninguém saberia de nada. O próprio legista ficaria em dúvida, assinalando “causa natural” na última ficha preenchida com seu nome no cabeçalho.

Animada, liga o laptop, abre o chrome e entra no google.

(…)

Blue Jeans

I will love you until the end of times
I would wait a million years
Promise you’ll remember that you’re mine
Baby, can you see through the tears?

Salve, salve, Lana Del Rey.

Três teses, três antíteses

A realidade só dura por um dia.

O que é a realidade? Pode ser confundida com presente? O que é o presente? Esse segundo… agora? Não, não, esse já virou passado. E o próximo? Não, esse é futuro. Confundir realidade com a manifestação do ‘presente’ é aniquilá-la conceitualmente. Realidade, então, é isso: o instante mágico onde fundimos o passado memorável e o porvir almejado.

O futuro não é esperança, é desejo apenas.

Sem desejo não há esperança. É o desejo o dínamo da esperança. Sem desejo, a esperança morre.

A lembrança é uma distância que só tende a aumentar

Se admitirmos que presente e futuro se mesclam pra formar aquilo que muitos chamam de presente, estaremos numa situação curiosa. Sim, curiosa, porque testaremos o valor da lembrança. Sua intensidade dirá muito a respeito de seu próprio valor: quanto mais intenso, mais presente. Não, não se distanciará, não se esmaecerá no limbo da memória – se intenso for.

Uma vida para esquecer

Estava em um filme de Bélla Tarr. Predominava o preto-e-branco, o silêncio. No casebre, em um canto em penumbras, seus olhos encontram o papel envelhecido nas mãos. Mãos calejadas, ásperas pelo tempo, castigadas pela aridez do trabalho. Estão trêmulas. No papel, ele lê:

“Não quero mais estar fascinada. Prefiro esquecer de mim e do quanto me machuquei. Não mais que doa para sempre. Passo o tempo a esperar que a água do choro lave, lave, lave e seque.”

Soluça um choro sem lágrimas. Ventania range as velhas engrenagens da janela. No horizonte não vê nada, porque, no limiar dos extremos, muita luz cega e se iguala a escuridão.

Desejar esquecer é como tentar levitar.

Não é necessário um desejo, uma fé-grão-de-mostarda.

É preciso uma vida.

Filhos

Muito mais que garantir a perpetuação da espécie, filhos garantem o apego dos pais a essa malfadada vida. Sem eles, a humanidade se extingue; com eles, os pais vêem sentido na vida.