Orgulho

O orgulho se retroalimenta. A cada minuto a mais, um quilo de orgulho se soma. Quanto mais o tempo passa, maior o monstro fica. No correr do ponteiro do relógio, esperanças antigas se fossilizam nas lembranças. Projetos antigos envelhecem em papéis amarelecidos. E a vida corre, errante por um rio que não sabe a qual oceano se dirigir.

Aprendizado

“Aqui aprendi que a vida não tem piedade e que neste mundo, algumas coisas são… impossíveis.”

É assim, soturnamente, que Lorens Löwenhielm, tenente do exército sueco, diz adeus a Fillipa, em “A festa de Babette” (Dinamarca, 1987). Frustrado pela impossibilidade de casar-se com a moça, o amor de sua vida, se despede do pequeno vilarejo no litoral dinamarquês para, segundo ele, nunca mais voltar.

Muitos anos depois, já idoso, condecorado e experiente general, retorna para um jantar na casa de Fillipa. A despedida, dessa vez, é em outro tom:

“- Estive contigo todos os dias da minha vida. Diga-me que sabes.

– Sim, eu sei.

– Eu estarei com você todos os dias que me forem concedidos. Até o fim de minha vida. Todas as noites, me sentarei para jantar com você. Não com meu corpo, pois isso não tem importância, mas com minha alma. Porque esta noite aprendi que neste lindo mundo nosso, tudo é possível.”

O “lindo mundo nosso”, por óbvio, não encontra significado no mundo real, uma vez que os dois não foram e jamais serão um casal em sentido estrito. Mesmo assim, o velho general descobriu, depois de anos, que há um mundo jazendo por detrás da aparente negação real. Sublimou a necessidade do encontro dos corpos físicos, não por estar velho e sem desejo, mas por saber que, para além da realidade concreta, o que ele sentia foi, é e será compartilhado por sua amada.

Lindo demais.

Ruínas

Ruínas são rugas do passado no presente. São memórias que assolam o espaço, lembranças de um tempo que, há muito, já se foi. Projetam um estranho sentimento de estranheza ao visitante de áureos tempos, e uma falsa sensação de nostalgia ao neófito.

Em “Pietá” (Coréia do Sul, 2012) , uma árvore é plantada diante de um velho e abandonado edifício. É uma espécie de comemoração do reencontro entre Kang-do, um absurdamente solitário e violento cobrador de dívidas, e sua mãe, anos após o abandono materno. A velha construção, entretanto, é muito mais do que mero coadjuvante na cena. Embora não se torne onipresente no decorrer do filme, veremos, no final, que o plantio da árvore não poderia ser em outro lugar. Vingança e hostilidade se simbolizam nas ruínas, como monumental ódio e amargura que, para se consumarem, simulam-se doçura. O prédio é uma quase morte, posto que já não representa mais vida. Pouco importa as lembranças evocadas pelas paredes decadentes. Não há mais vida. Não há mais esperança. Em um percurso estranho, angustiante, passamos perplexos pela violência, amor, redenção e morte.

Mas nem sempre as ruínas são hostis ao estranho. São refúgios para os marginalizados, destituídos de qualquer esperança de um lugar salubre para chamar de lar. Em “Para sempre Lilya” (Suécia, 2002), a protagonista adolescente e seu amigo Volodya, de apenas doze anos, encontram abrigo em um predio abandonado na periferia de uma anônima cidade soviética (a gravação foi feita em Paldiski, cidade estoniana). É o lar de Volodya, depois de ser expulso de casa pelo pai alcoolatra. Volodya encontra em Lilya sua referência humana. Apaixona-se. Amor impossível, óbvio. Se o amor o anestesia da dor da vida, em Lilya a impulsiona para uma nova vida fora de seu país. A Suécia a esperaria para viver uma vida digna, junto ao “homem-que-se-importava-de-verdade-com-ela”. Ao se ver amarrada, na Suécia,  a um esquema de exploração sexual, chega a vez de Lilya, agora também sem amor, se deparar com a crueza da realidade dura, violenta, sem alternativa à dor. O velho predio administrativo soviético em ruínas era, de fato, muito mais acolhedor e protetor do que qualquer esperança de uma vida decente. Volodya amava Lilya. Em Volodya estava, mais do que seu presente: estava seu futuro. O amor era vida.

Em Lilya, mais do que em Kang-do,  a melancolia sai do personagem e toma todo o ambiente, em fluxo constante. As ruínas, antes uma espécie de conforto provisório, acabam sendo apenas a antesala da decadência da vida. Para Kang-do, as ruínas foram uma porta para a morte. Nesse mundo de muitos desejos e pouquíssimas realizações, o fardo do fracasso é observar as ruínas dos sonhos. Sonhos que se esfacelam aos borbotões. Estaria certa Luciana Berlinck (Melancolia: rastros de dor e de perda, p. 154), ao dizer que “se tudo é descartável e efémero, tudo se torna imediatamente ruína e a própria sociedade, imersa em ruínas, é melancólica. Eis porque o homem melancólico não é excepcional nesta sociedade, ele é o comum”? Sinceramente, não sei. Entretanto, ser “comum” já traz alguma esperança de normalidade.

 

 

Nada pessoal

O mundo do solitário é inviolável. Mesmo quando, por acaso do destino, se depara com outro tão só quanto ele mesmo, o que sustenta a relação entre os dois não é a disposição a romper o estado de solidão. O que os aproxima é o gesto de se olhar no espelho, de não mais se achar a única pessoa desse mundo. “Sim, há outra pessoa como eu”, e isso os consolam. Mas o encontro dos dois mundos é improvável, porque, se assim ocorrer, ambos implodem. A dor da solidão é amenizada por uma outra dor, mais solidária. Se é menos dor? Talvez, porque há o compartilhar, há o andar em cumplicidade, mesmo não sendo essencialmente parelho.

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MV5BMTk2MDkwMDc2MV5BMl5BanBnXkFtZTcwMDAxMTIzNA@@._V1__SX1377_SY680_É assim, no conjunto de pequenas elevações e extensas planícies margeadas por pântanos que o oeste da Irlanda surge como o terceiro personagem do filme “Nada Pessoal” (Nothing personal, 2009). Personagem melancólico, taciturno, sufocante, mas de um lirismo e beleza encantadores. Os dois outros personagens de carne e osso, os solitários do filme, se silenciam a favor da marcante presença do espaço. Pouca luz solar, chuvisco constante, frio. Um homem e uma mulher desiludidos do mundo à volta. Reconhecem no outro uma espécie de si mesmo, uma imagem refletida no espelho. Pequenos gestos trazem a humanidade de volta no prazer da recém-descoberta companhia. Não há, entretanto, encontro, no sentido restrito da palavra. Não há muita cor no mundo (real) para tanta melancolia. Longe de ares hollywoodianos, o final é uma poesia em forma de filme. De acre sabor, como a vida.

Paixão

Alemanha Oriental, 1984. Anos de chumbo no leste europeu, oprimido pelas ditaduras de orientação comunista. Espião na penumbra, com aparelhagem de escuta posicionada. Ouve atento Appasionata, de Beethoven, tocada no piano por Dreyman, o espionado. A música termina. “Será que alguém que ouve essa música… que a ouve de verdade… pode ser uma má pessoa?”, pergunta Dreyman a namorada. O espião chora.

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A vida só é bela se vivida com muita paixão. Parece óbvio, frasezinha de efeito de qualquer livrinho de auto-ajuda. Para o espectador de “A vida dos outros” (Alemanha, 2006, Oscar de melhor filme estrangeiro), a frase é a base de um conflito moral permanente. A paixão pela arte deveria colocá-la acima de qualquer outra paixão? A paixão pelo trabalho deveria cegar a pequenas injustiças ou amoralidades pelo caminho, colocando em risco antigas amizades? A paixão por status e respeito de outras pessoas deveria ser o centro de nossas vidas? “Fazer o que é certo” tem seu preço, e é caro. Mesmo assim, a resposta sombria que o filme nos trás é essa: por pior que seja os resultados, ainda é melhor fazer o que é certo, independente de reconhecimento, status ou qualquer outro lustre social. Tal qual a vida, o triunfo do bem ou do mal é sempre provisório. Nada é para sempre. Apenas as consequências e, é claro, nossa consciência.

 

A arte da amizade

Mesmo cercado de amigos podemos estar sozinhos. A solidão, portanto, é o oceano; a amizade é uma ilha. Como bons migrantes, passeamos serelepes pelo oceano, às vezes inconsciente da própria existência da imensidão aquática que nos rodeia. Quando gritamos terra à vista, porém, percebemos que, como nós, a ilha – à moda daquilo que se viu em Lost, o seriado americano – também é móvel e está migrando por esse oceano. A saída é fabricarmos uma fraternidade de ilhas, costurada por afinidades de pequenas ou grandes ideias em comum. Reza a lenda que devemos conversar muito sobre as pequenas, mas jamais ficar ‘futucando’ as grandes; pode brotar aos nossos olhos alguma divergência, e isso pode desencadear fraturas definitivas no arquipélago. Por isso, preferiremos sempre conversar sobre amenidades, sobre coisas comezinhas. O sentido da vida,  nossas angústias mais profundas e nossos medos mais terríveis ficam guardados em algum cofre, distante do olhar menos acurado de um passante comum.

073de152433aa4e76ae919d53fdc96df_jpg_290x478_upscale_q90Em “Até a eternidade” (França, 2012), a fraternidade de Max, um cozinheiro de sucesso em Paris, é celebrada uma vez por ano nas proximidades de Bordeaux, no litoral francês. Cada participante possui sua dor, sua angústia, e por mais que se dão bem ‘no social’, nenhum amigo é compreensivo o suficiente para ‘entrar’ no mundo do outro. Falta alteridade. O outro continua sendo o outro, mesmo estando próximo, gargalhando de uma ou outra piada. É o grupo servindo pra acomodar a solidão de cada um. O final, embora um pouco hollywoodiano, é de acabar com o coração dos mais durões. Lições? Por mais que nossa tendência seja caminhar solitariamente, a amizade precisa ser cultivada; por mais problemática que seja uma viagem em grupo, sempre será melhor que viajar sozinho; por melhor  que pareça o estado do nosso amigo, é fundamental que o ouçamos de verdade. Filme altamente recomendado, apesar da crítica especializada ter sido pouco generosa…

Fonte da imagem: www.filmow.com

Árido

A belíssima fotografia talvez seja o que mais se destaca em “Árido Movie” (2005). Para quem, como eu, que ama o sertão nordestino, as imagens são de encher os olhos. O cenário do filme engole a narrativa – espécie soft de “Abril Despedaçado”. Desde os cinco anos longe do cotidiano tradicionalista de uma pequena cidade do sertão pernambucano, o cosmopolita Jonas se depara, no velório de seu pai, com a expectativa de sua família em vingar o homicídio. Evocar Camus (“O estrangeiro”) é emblemático na caracterização da estranheza de Jonas em relação a sua própria identidade. “Eu me sinto estrangeiro em qualquer lugar. Até nos meus próprios sonhos”, diz Jonas a Soledad, uma jornalista que conhece no caminho de Rocha, cidade fictícia do interior de Pernambuco onde seu pai está sendo velado. Fazem “ponta” no filme José Celso Martinez Corrêa, José Dumont, Matheus Nachtergaele e Selton Mello. Aliás, é totalmente dispensável o núcleo de Selton Mello, responsável pela aspecto cômico, de apologia às drogas e do amplo estoque de palavrões tão necessário a qualquer filme nacional. Inacreditável ainda é o mesmo Selton Mello ser figurante de Guilherme Webber, o inexpressivo protagonista. Destaques para o ‘papo-cabeça’ do Zé Elétrico (José Dumont) e a prosa nonsense do Meu Velho (José Celso Martinez Corrêa). No cômputo geral, um bom filme.

Entre o bem e o mal

Estamos acostumados, desde a mais distante memória da infância, a maniqueísta divisão do mundo entre o bem e mal absolutos. Disney é assim, cultura cristã é assim. Por isso é tão divertido “A viagem de Chihiro”, ganhador do oscar em 2003 na categoria de melhor animação. Sem vilões e mocinhos, a estrela do filme é a aparentemente ingênua garotinha Chihiro, uma menina de bom coração que se vê, junto com seus pais, presa a um mundo de fantasia. Em duas horas de história, Chihiro nos encanta por seu progressivo amadurecimento e sensibilidade na interação com as outras criaturas do mundo paralelo em que mergulha. É impossível não colocá-lo ao lado de “Alice no País das Maravilhas” ou “Crônicas de Nárnia”; com toques ainda mais sombrios daqueles usados por Del Toro em “O labirinto do fauno”, a animação é, em alguns momentos, assustadora. Paradoxalmente, a estranheza nos deixa ainda mais propensos a refletir sobre o sentido das inúmeras metáforas apresentadas no filme. A importância da identidade conferida pelo sentido dos nomes, não julgar pelas aparências, decidir pelo que é certo independente das circunstâncias, o valor da amizade… Lindo, lindo.

Sem Rosto, Chihiro e Zeniba. Disponível em http://spiritedaway.wikia.com/wiki/Zeniba/Image_Gallery.

Chihiro: Parece que eu já havia encontrado Haku [leal amigo que encontra e protege Chihiro], mas há muito tempo atrás…

Zeniba [feiticeira]: Isso é um bom começo… uma vez que tenha encontrado alguém, você realmente nunca esquecerá! Apenas demora um pouco para que sua memórias retornem.

Suicídio

A morte de Robin Williams, ocorrida hoje, provavelmente incluirá o suicídio em muitas rodas de conversa. Sobra quem condena, e qualquer tentativa de explicar os motivos que conduzem uma pessoa a colocar um fim em sua própria vida é vista com perplexidade.

Não vou fazer papel de advogado dos suicidas, óbvio. Preciso dizer, porém, que equivoca-se aquele que considera o suicida um covarde. Homens famosos por valentia e coragem tremem quando sua vida é colocada em risco. Já o suicida se encontra, convicto, com seu derradeiro suspiro.

Não há aquele momento em que temos o sono como a mais agradável companhia? O suicida deseja isso, apenas isso. Um sono, um descanso para suas dores que tanto o aflige. Seu sofrimento é maior do que qualquer expectativa a mais de dias ou horas de calmaria.

O que ele não sabe é se em seu novo sono haverá espaço para a morna inconsciência de um adormecer ou um pesadelo ainda pior do que conheceu em vida.

Solidão

Descubro que o estado de solidão não ocorre simplesmente quando nos deparamos com ausência de companhia. Essa é apenas a mais trivial de suas formas. Talvez esse vazio que a solidão proporciona seja sua face mais branda. Horrível, mesmo, é quando a solidão PREENCHE. Sufoca. Tortura. Envolve-nos numa camada pegajosa de desconforto, em que cada movimento – à maneira de um inocente inseto capturado em uma teia de um aracnídeo qualquer – nos faz ainda mais preso, ainda mais asfixiado.