Pesquisando sobre identidades espaciais, me deparei com a tese “Brasília: de espaço a lugar, de sertão a capital (1956-1960)” (UnB, 2008, doutorado em História). No geral, é um estudo brilhantemente elaborado. Escrito em primeira pessoa, o texto permite ao leitor “viajar” no trajeto científico da pesquisadora. Ter mais de trezentas páginas, nesse caso, é um benefício para quem lê.
Bem, mas não foi isso (ou somente por isso) o que me motivou a escrever esse texto. Entre vários conceitos interessantes, a autora, Ana L. Gomes, recorre a “capitalidade” para distinguir Brasília da cidade do Rio de Janeiro. Nesse sentido, segundo a autora, falta “capitalidade” a Brasília e, mesmo distante meio século da transferência da capital, a cidade do Rio de Janeiro a conserva.
Primeiro, vamos ao conceito de capitalidade (que, confesso, era novo pra mim): segundo a autora, capitalidade seria, em linhas gerais, a “capacidade de representar a nação” (p. 55). Assim, mesmo Brasília sendo a capital federal, ela “não consegue representar a nação” (p. 109). Essa deficiência em representar o Brasil talvez possa ser diagnosticado pela ausência de Brasília nas imagens de Brasil; na verdade, abundam associações do Brasil na mídia (e, talvez em mesmo grau, nas propagandas para fisgar turistas lá fora, no estrangeiro), com o “litoral, por exemplo, ao carnaval, ao Rio, às praias” (p. 12).
A rigor, esse sentido de capitalidade fica preso a representação da cidade no imaginário popular, ou, em outras palavras, legitima a cidade-capital e seu sentido de capitalidade apenas para a cidade-símbolo, seja do estado, seja do país.
Peguemos, pois, o exemplo do país que nos deu inspiração para uma República Federativa: os Estados Unidos. Os EUA não tem sua imagem relacionada de imediato a sua capital. Nova Iorque e Los Angeles, por exemplo, tem muito mais peso representativo da nação americana do que Washington. A mesma regra vale para os estados americanos. A capital da California não é Los Angeles, nem San Francisco (é Sacramento); da Florida não é Miami, nem Orlando (é Tallahassee); da mesma forma que Nova Orleans não é a capital de Louisiana (é Baton Rouge), Chicago não é capital de Illinois (é Springfield), Detroit não é capital de Michigan (é Lansing) e nem Nova Iorque é capital do Estado de Nova Iorque (é Albany). São vários e vários exemplos, só nos EUA.
Talvez – e essa é minha hipótese – não faz sentido para as nações modernas escolher uma cidade-símbolo para ser sua capital. O conceito de modernidade, aliás, é um dos motores da ideia de construir novas cidades para serem capitais. Assim foi com Aracaju (Alagoas), Belo Horizonte (Minas), Goiânia (Goiás), Boa Vista (Roraima) e Palmas (Tocantins), no Brasil. Certamente haviam cidades, nesses estados, que representavam imageticamente o Estado e, portanto, possuíam a tal capitalidade.
Posso estar errado, evidentemente, mas me parece que a escolha de uma capital, hoje, não passa pelo sentido dado de “capitalidade”. Não foi com várias cidades modernas e, certamente, não foi com Brasília. No entanto, ninguém duvida do sentido e importância de Brasília “apenas” por ser a capital federal. Retirem toda a estrutura político-administrativa de Brasília, por exemplo, e a cidade certamente “murchará”. Milhares de pessoas só estão em Brasília porque foram atraídos pelo sentido de “capital” que ela encerra em si mesma.
Mesmo não considerando – ou, pelo menos, duvidando – da capitalidade de Brasília, a autora é muito generosa com a capital do Brasil. Para ela, “a capitalidade de um país talvez fosse muito pouco para as dimensões que Brasília teve e tem no sentido da construção mítica da nação e de nossa identidade” (p. 307), o que, certamente, não há como discordar.