Choque

Fui sombrio. Falei sobre morte. O tempo todo. A criançada não deve ter sacado que a morbidez estava para além do que se ouvia. No final das contas, como compreender a paixão pela morte? Não seria ele, o palhaço, o exemplo máximo de felicidade? De onde retirar tantos sorrisos se, lá dentro, o gosto acre preenche todas as saliências, todos os espaços vazios que ele mesmo supunha certa vez estar preenchido?

Não, não há explicação. O choque será sucedido pelo torpor. O incompreensível e o inacreditável estará, mais uma vez, provando como a loucura pode superar a razão humana.

Milagre

Lázaro estava em descanso. Provavelmente, se perguntado, não desejaria voltar a vida. Ele não faria a vontade de Lázaro, mesmo dele sendo amigo íntimo. Sua Vontade é soberana.

O milagre foi generoso para com suas irmãs. A angústia e a dor da perda foram resolvidas com a devolução de Lázaro ao seu convívio familiar. Lázaro, entretanto, voltara à disponibilidade para a dor. Do descanso sossegado para a vida em angústia, Lazaro não teria motivos sinceros para agradecer ao Seu Amigo. Mas Ele sabia de tudo. Sabia que o amigo morreria. Sabia que o corpo de seu amigo entraria em decomposição. E sabia também que o milagre seria ainda mais milagre, seu poder seria ainda mais poder se Lazaro viesse a vida depois de esgotada todas as esperanças.

Ele sabia das coisas.

Não há limite para seu conhecimento ou para seu poder. A Ele, toda honra.

[Leitura: João, 11]

Valente

O que vale um homem valente?

Sua braveza, sua coragem, certamente serão suficientes para vencer uma batalha.

Mas sua valentia servirá para vencer uma guerra?

Não, certamente não.

É preciso mais que isso. É preciso que, ao lado do valente, estejam mais valentes.

Tombado na guerra o único valente, seu exército torna-se presa fácil ao inimigo.

A batalha vencida pelos valentes, por sua vez, enche de ânimo seu exército.

Lutar sozinho é desanimador demais. O ânimo só estará a seu lado se outro valente estiver bramindo a espada a seu lado.

Guerras não são feitas para serem travadas sozinho.

[Leitura: Crônicas, 1o, 11]

Mornidão

A vida é curta demais para sermos indiferentes a ela. Cada minuto deve ser vivido intensamente. Ele não mais voltará. Faça-a valer a pena. Não seja morno. De que vale a pena ser mero expectador? O que ganha apenas observando os dias à sua frente? Porque acrescentar horas a sua vida e não vida a suas horas? Não seja morno!

Acrescente frieza a sua vida.

No calor escaldante, precisamos de refrigério. A água gelada nos concede alívio. Água morna não mata sede. Água morna não refresca. No calor da discussão, é necessária a intervenção rapida e eficiente da racionalidade. A razão é fria. A mornidão é sinal de indiferença. Não serve pra nada.

Acrescente calor a sua vida.

Envolva-se no calor do amor que te faz bem. Permita-se ser tomado pelo efeito terapêutico da água quente. Deixe a água quente percorrer seu corpo e despi-lo do cansaço. O calor depura. A quentura dissolve impurezas. A mornidão é sinal de indiferença. Não serve pra nada.

Não seja morno. Não se permita usufruir dos benefícios da indecisão. Escolha e seja responsável por elas. Tome decisões. Não se deixe levar ao sabor do vento. Não seja morno!

Sejamos frios quando precisamos ser frios. Sejamos ferventes quando precisamos ser ferventes. Mas jamais sejamos mornos. Em ocasião nenhuma. A vida não nos merece assim.

[Leitura: Apocalipse, 3]

Selvagem

A zebra estava ao longe, passeando faceira. O olhar do felino esteve atento. Seu ataque oferece pouca chance de defesa. Está claro para ele. Mesmo assim, o ritual necessita de mais atrativos. O leão quer resistência. Quanto mais dificuldade, maior o seu troféu. Quer se sentir de fato o rei da floresta. É importante que ela corra. Que ela se mostre convicta de que é possível se safar. Que reúna força suficiente para tentar escapar. Esse jogo atiça o felino. Frustrado ficaria se não houvesse oposição.

O homem que observava, de longe e protegido pelo veículo blindado do safári, ficou apreensivo. As parcas noções de biologia não o deixava otimista. De nada adiantava torcer pela zebra. Ela é presa. Está fadada a ser devorada – mais dia menos dia. O espetáculo não é nada excitante. Se sente enojado. Quando o leão se põe ao ataque, uma lágrima brota em seus olhos.

Há homens que não foram feitos para a dureza da vida. Há homens que, de tamanha covardia, sentem-se mais aconchegado na possibilidade da morte. Há homens que, criados na ideia de uma natureza harmônica, se impactam diante da crueza da vida selvagem. Não há espaço para romantismo na natureza. Não há espaço para generosidade.

Ele, o homem do safari, voltou pra casa diferente. Simpatizou-se cada vez mais com a ideia da morte como um descanso. Desistiu de viver. E teve consciência da morte aos poucos, gradual, dia após dia. À cada tarde, um dia a menos. A cada dia vivido, um passo a mais para a morte certa. Não sabia em qual instante, mas a sentia espreitando a cada esquina. A cada gole de água. A cada respirar ofegante.

E foi assim que ele conheceu um pouco de esperança. Às avessas, é verdade. Porque suas esperanças não se centravam na vida, mas na morte. A esperava como prêmio. Logo viria. Se mais cedo, melhor.

Entregou-se.

Brevidade

Choro muito,

Mas sei que um dia terei minha consolação. Meu descanso breve está. Assim como os dias passaram como relâmpago, mui breve estarei nos braços do Pai.

Meu coração padece por ingenuidade,

Mas sei que o Reino dos Céus brevemente haverá de ser meu; o meu socorro é para agora – me privando do mal a mim e a todos que amo – e para sempre.

Aflição me toma,

Mas sei que é o gemer do que há de mais profundo em mim, e só terei consolação definitiva quando as trombetas em breve soarem.

Tão breve como os séculos – aos olhos do Senhor – será minha espera, aos meus olhos.

É isso que espero, é nisso que confio.

[Leitura: Mateus, 5]

Refúgio

Há um rio caudaloso que desce da cidade sagrada.

Nesse rio, fartarão-se os eleitos.

Lá não existirá mais dor.

Nem cansaço.

Nem lágrimas.

Mesmo hoje é possível descansar às margens do rio.

Eu consigo.

Embora não saiba exatamente se o ruído das águas

São mesmo do rio ou das lágrimas que dos meus olhos caem.

Soluços findando, sinto-me em alívio.

E dou graças a Ele por me sustentar, me segurar, permitir meu choro escondido e o ombro amigo,

Jamais desistindo de mim – mesmo que, por alguns instantes, eu me distancie d’Ele.

[Leitura: Salmos, 46]

Sacrifício

O amor exige sacrifício. Se não houver sacrifício, não há amor.

“O amor é sofredor”.

Em outros tempos, considerava que o símbolo máximo do amor era não inspirar “posse” sobre o ente que, em mim, houvesse desperto esse sentimento. Estava ainda maravilhado com uma lição d’O Pequeno Príncipe:

“Se alguém ama uma flor da qual só existe um exemplar em milhões e milhões de estrelas, isso basta para que seja feliz quando a contempla. Ele pensa: “Minha flor está lá, nalgum lugar. . . ”

Ou, numa versão contemporânea das velhas certezas do passado, Jorge Vercilo cantaria “Pedra preciosa de olhar/Ela só precisa existir/Pra me completar”.

Enfim, um amor despreendido, desinteressado, tranquilo, sereno. O sacrifício exigido, nesse amor, seria a renúncia a posse, o desejo de que o outro estivesse bem – mesmo que longe.

A possessividade, entretanto, está muitos níveis acima desse amor.

O Pequeno Príncipe apenas desconfiava, mas o paraíso do amor estaria no planeta isolado: uma única flor, distante de qualquer olhar, estaria a ser contemplada unicamente pelos olhos desejantes de seu amado.

Mas sacrifícios maiores são exigidos quando o amor também é maior…

Ao maior amor do mundo, a vida é exigida como consequência.

Ao entregar a vida, em morte horrenda, fomos apossados por Ele.

Um amor possessivo, eis o que é.

E “estou certo de que, nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as potestades, nem o presente, nem o porvir, nem a altura, nem a profundidade, nem alguma outra criatura nos poderá separar do amor de Deus” (Romanos 8:38,39)

Eis um amor verdadeiro. Um Amor.

Sem sacrifício, não existe Amor.

[Leitura: 1 Corintios, 13]

Calma

Todos se preocupavam com ele. Já havia precedente da crueldade da lei terrena. Seu amigo havia sido executado. Ele, entretanto, estava calmo. Toda sua ansiedade estava repousada em Deus. Esvaziou-se de qualquer preocupação e a sonolência o tomou. A rígida segurança na prisão impediria sua fuga. De qualquer forma, ele não se via fugindo. Como um outro amigo seu diria, “o morrer é lucro”. Se assassinado por não negar seus princípios, melhor ainda.

A calma de Pedro é uma evidência de seu amadurecimento na fé. Não se harmoniza com o impulsivo que cortara a orelha de um soldado romano ou com o indeciso e medroso homem que há tão pouco tempo havia mentido a alguém quando inquirido sobre suas raízes cristãs. Pedro o negara. Três vezes, como Ele havia revelado. Mesmo tendo o acompanhado nos últimos anos, sendo testemunha ocular do Verdadeiro Homem e Verdadeiro Deus, Pedro o negara. Três vezes.

Pedro dormiu sob vigilância extrema e tão horrível expectativa de morte. Não se atribulara. Já estava ciente de que a morte e a vida estão de tal maneira entrelaçadas que somente a Verdadeira Vida seria possível tão somente se ele passasse pela experiência da morte. Pela morte, encontraria a Vida. Unido na experiência da morte (vencida por Seu Salvador), Pedro o encontraria.

Daí o encanto pela morte enquanto solução temporária para problemas temporários. Quem ama a Vida, por coerência, não deve temer a morte. Quem ama a Vida, certamente deve deseja-la.

É na morte que encontramos a Vida.

[Leitura: Atos dos Apóstolos, 12]

Amor

A beleza de tudo está em um amor correspondido. É loucura pensar que um amor não-correspondido sobreviva ao tempo. Será?

Paixão e amor

Especialistas dizem que a paixão pode durar pouco mais de um ano. Paixão seria aquela coisa fugaz, momentânea, mas arrebatadora e fulminante. Com o tempo, se desfaria. O amor seria o que restasse (se restasse), perpetuando-se em amena forma.

Diferente da paixão, o amor seria racional, um projeto a longo prazo. Já o casamento, a expressão pura do amor, sua inexorável consequência. Anos de convivência, filhos, patrimônio, projetos juntos.

A paixão corresponde aquela chama que impulsionaria, no coração dos enamorados, a necessidade de se verem mais próximos e por tempo indeterminado. O impulso necessário para que o amor se instale, portanto. Parece loucura para muitos, porque o apaixonado vê no outro como seu. Coisifica-se o outro. É algo a se ter posse.

Verdadeiro amor

O verdadeiro amor (o Amor), entretanto, é a paixão prolongada, perene, duradoura. Você não sabe quando foi exatamente que nasceu, mas sabe que ele apenas morrerá quando a estrutura física que o mantém se findar.

Nisso, reciprocidade é inútil. Basta que alguém ame para existir amor. Se há reciprocidade, ok, beleza. Não há, entretanto, exigência de reciprocidade. Se o amor for Amor, ele viverá apesar do ambiente inóspito. O verdadeiro amor, o Amor, sobrevive a tudo – e nasce e se mantém apesar de tudo.

Manolete

No auge, o toureiro Manolete conhece Lupe, uma atriz de cabaré conhecida na alta sociedade espanhola. Ela será sua grande paixão, jamais convertida em amor. Segundo o El Mundo, Lupe era “a única alegria de Manolete”.

Como qualquer apaixonado, não se importa com o passado de Lupe . Não se importa com a condição de vida dela nesse momento – embora lhe cause arrepios, agora, qualquer mero flerte de Lupe com algum admirador. Como qualquer paixão, se estabelece de forma incondicional. Seus amigos são a voz da razão. Sabem que aquilo é loucura. Apelos em vão.

Manolete amava Lupe de tal maneira que dificilmente ela o entenderia. Ela se sentia aprisionada. “Não sou um canário na gaiola”. O verdadeiro Amor sufoca. Não concede liberdade ao outro. Agiganta o sentimento de posse.

A história de Adele H.

O tenente Albert Pison, da cavalaria Britânica, teve um breve relacionamento com a filha de Victor Hugo, Adele Hugo. Adele atravessou o Atlãntico atrás do que foi o seu grande amor. Pison, que havia conversado sobre casamento, perdera o interesse em Adele.

Adele tinha consciência que o amor, esse banalzinho que está aí na boca da maioria, nasce e morre um dia. Já o Amor, não. Em prantos, diz ao indiferente Pison que não se importaria em não ser amada; bastaria que ele a permitisse amá-lo.

A paixão, nessa intensidade, exige muita resistência psíquica. Adele sucumbiu. Acabou louca. Embora, no final do filme, Pison e Adele se cruzam sem nenhum reconhecimento por parte dela, isso seria facilmente explicado mesmo se ela estivesse em lucidez. Afinal, depois de anos, Adele não era mais Adele, assim como Pison não era mais Pison.

Ali houve uma total dessincronização tempo/espaço. Mesmo assim, Adele se manteve fiel a seu grande amor. Não era sua opção, entretanto. O Amor não permite escolhas.

Sincronia tempo/espaço

Para muitos, o Amor morre quando, na verdade, ele permanece vivo. Se torna mais abstrato, fato. Não há materialidade mais. Aquela superposição tempo/espaço que possibilitou, por alguns instantes, a reciprocidade, pode apenas ser entendida como a fase ‘confortável’ do Amor. Ele haverá de existir apesar disso. Sobreviverá a morte física do outro. Sobreviverá a morte não-fisica do outro, manifestada no desvio irreconciliável desse para outros braços, outras bocas, outros corações. São duas mortes perpétuas, mas não do Amor. O Amor viverá. Quem o sente testemunhará sua existência para sempre.

A intensidade do amor

Já li em algum lugar que o Amor, assim, com maiúscula mesmo, é tão imenso que mesmo se as pessoas desaparecerem essa energia ficará guardada em algum lugar no universo. É possível. Amor (o Amor) suporta décadas. Suporta indiferença do outro. Se fecha em solidão, se for o caso. Mas morre naquele em que foi gerado apenas por ocasião de sua morte física.

Amor assim não se vê em muita parte.

É loucura para a maioria.

Nesses termos, apenas os loucos sabem o que é o Amor de fato. Doação extrema. Entrega extrema.

Para o amante, é difícil sequer admitir que o outro possa ter gostos diferentes.

Ciúme é apenas efeito colateral, uma espécie de prova da intensidade do Amor – que gera tanta posse.Porque se sente integrado ao outro. Quer se vestir no outro. Se sentir no outro. Se ver no outro.

O desaparecimento do outro – por morte ou desistência – não é capaz de fazer minguar ou extinguir o verdadeiro Amor. A “ausência” jamais poderá ser preenchida.

Ser encontrado pelo Amor é uma benção, mas também uma maldição. Há mais ausências que presenças nessa história. Por isso é tão único, tão singular, tão excepcional. Depois de ter sido a ele revelado, sua vida jamais será a mesma.