“Sonho

que se sonha só… é apenas sonho”.

A frase é uma introduçãozinha de efeito em uma canção de Raul Seixas. Pretende, com isso, mostrar que sonho levado por duas e mais pessoas tem possibilidades reais de se transformar em realidade.

De tanto repetir esse mantra, transformou-se em auto-ajuda para multidões. Acho uma besteira isso.

Primeiro porque boa parte dos sonhos que já foram sonhados coletivamente transformaram-se em piadas quando postos em prática.

Segundo porque não tenho mais tendência revolucionária. Talvez fui incendiário algum dia. Hoje, sem nenhuma dúvida, sou bombeiro.

E terceiro, porque o sonho bom é o sonho que se sonha só. Ocorre em um terço da nossa vida e, quando bom, faz a gente querer sonhar nos outros dois terços da vida.

Tem gente que consegue. Vivem em semi-alucinação. Quando a realidade contrapõe o sonho, chocam-se. Amarguram-se. Em consciência da solidão do sonho, isto é, do sonho sonhado só, a frustração pode ser menor.

Pode ser que seja.

Realidade

O massacre na boate Bataclan demole o sonho de convivência solidária e respeitosa. A alteridade é um sonho desfeito pela crua realidade. Não há novidade. Os extremismos acompanham o homem desde a pré-história. A violência também.

Coldplay homenageou as vítimas do ataque com uma versão de Imagine, composta por John Lennon há quase quarenta anos e, ao que parece, destinada a ser uma canção atemporal. Daqui mil anos Imagine terá o mesmo efeito.

Realidade é realidade. Sonho é sonho. A realidade oprime o sonho. Em sua crueza, a realidade põe o sonho na condição de uma dispensável fantasia.

“You may say, I’m a dreamer
But I’m not the only one”

Pobre Lennon. Mark Chapman pôs fim ao seu sonho. E o sonhador partiu em meio a uma poça de sangue na 72th Street. Sozinho. Melancólico, para dizer o mínimo. A realidade não preza pela poesia ao por fim aos sonhos.

Tradição

Alimaa sabia das regras da tribo. Dugar logo ia chegar. Ele não entenderia a displicência da esposa. O praavisan, uma variação local do Khuushuur, prato típico frito em óleo, deveria estar pronto à disposição do marido. Dugar ainda achava que era uma obrigação de toda mulher casada ao receber o marido no final do dia. Chimed, o pajem, considerava isso um absurdo. Esse costume há muito havia sido abandonado em outras famílias. A iguaria era preparada e servida considerando o desejo da esposa em também se alimentar ao lado do marido. Em outras tendas se servia praavisan de uma a três vezes por semana.

Chimed julgava ser uma tremenda estupidez a mulher servir-se de instrumento ao marido.

Dugar chegou e soube demonstrar seu desconforto. Disse que sabia o que aquilo significava: ela não se importava mais com ele. Esteve chateado durante toda a noite e o dia seguinte. Alimaa se condoeu. Procurou o marido, pediu perdão. Prometeu servir o praavisan sempre, tal qual rezava a antiga tradição. Dugar foi forte o suficiente para não dizer “eu te perdôo”. Seria uma fraqueza, uma declarada rendição aos encantos da mulher. Simplesmente a abraçou e, corpos colados, selaram o acordo de paz.

Na escuridão, Chimed tornou-se o primeiro homem feminista da história.

O gato

Era tratado como homem, mas não era homem.

~*~

O gato vivia por ali, manhoso. A esposa o amava, os filhos também. O marido o tratava com leniência. Tolerava-o, porque percebia que alegrava a casa. Achava, porém, que a esposa e os filhos gastavam muito tempo com o felino. Todavia, era discreto em seu crescente azedume.

~*~

Havia pouco tempo que tinha sido achado. Estranhamente, o gato parecia mais feliz quando não era bem cuidado. Às vezes, sem motivo aparente algum, se escondia atrás da porta. Se punha entre os de casa, chamando a atenção, mas ao menor sinal de que estava ‘sobrando’ por ali, se acabrunhava e fugia pra algum canto. Gato estranho.

~*~

Aquele gato sabia das coisas. Era parecido gente. Ficava em estado constante de vigilância. Tinha ciumes. Percebia quando era indesejado.

~*~

Certa vez, o gato teve um pesadelo. Sonhou que era segurado pelas costas por uma mão firme, enquanto a outra mão manejava um porrete que fazia uma parábola em direção a sua cabeça.

~*~

Depois do pesadelo, o gato achou melhor não frequentar a casa. Não achava meios de voltar à rua, seu antigo lar. Ficava por ali, no terreiro, olhando de soslaio. Quando as luzes se apagavam, ainda era possível escutar, de longe, o triste ronronado, misturado aos roncos e demais ruídos noturnos.

~*~

As crianças mal perceberam a mudança no comportamento do gato. Os adultos, sim. A esposa não quis demonstrar descontentamento, porque sabia a verdadeira opinião do marido sobre a concorrência de atenção em casa. E ele, o marido, já havia pensado, secretamente, em resolver a situação daquele gato atrevido e ousado, se não tivesse feito de lar o terreiro: um porrete em movimento de parábola.

~*~

Gato sortudo: foi avisado por um pesadelo.

Repeat, repeat, repeat

De mais ninguém
Marisa Monte e Arnaldo Antunes, disco “Verde anil amarelo cor-de-rosa e carvão” (1994)

Se ela me deixou, a dor
É minha só, não é de mais ninguém
Aos outros eu devolvo a dó,
Eu tenho a minha dor

Se ela preferiu ficar sozinha,
Ou já tem um outro bem.
Se ela me deixou a dor é minha,
A dor é de quem tem.

É meu troféu, é o que restou,
É o que me aquece sem me dar calor
Se eu não tenho o meu amor,
Eu tenho a minha dor.

A sala, o quarto, a casa está vazia,
A cozinha, o corredor
Se nos meus braços ela não se aninha,
A dor é minha.

É o meu lençol, é o cobertor,
É o que me aquece sem me dar calor
Se eu não tenho o meu amor
Eu tenho a minha dor

Arcaísmo

Fluido. Transitório. Liquido. Provisório. Efêmero. Incerto. Dúvida.

É assim os novos tempos chamados de pós-modernos. Nada oferece segurança. Tudo é passível de interpretação. Nada é absoluto.

Sou um homem atrás de seu tempo.

Deus vive, Nietzsche não, e eu não estou nada bem.

Sou um arcaico.

 

Vida feliz

Plantar uma árvore, ter filhos, escrever livros. Essa tríade parece ser o que melhor se produziu no senso comum para definição de uma vida feliz, cheia de propósitos.

Eu ainda não plantei árvore, não tive filho, não escrevi livro.

A certeza de ser amado como amo, porém, me faz ver que a vida já se mostrou em todo seu potencial a mim e que dela não careço mais de nenhuma benevolência.

Se morresse agora, eu morreria feliz.

Surdez à Lei

O que desvia os seus ouvidos de ouvir a lei, até a sua oração será abominável.
Provérbios 28:9

A oração do pecador é abominável a Deus?

Ao ler apressadamente essa passagem do livro de Provérbios é impossível não responder um sonoro SIM à pergunta.

Não é, entretanto, tão simples assim.

Há uma diferença a ser considerada: existem pecadores não-salvos – os ímpios – e pecadores salvos – os justificados.

Se não soubermos tal diferenciação, cairemos no absurdo de concluir que Deus há muito deixou de ouvir a oração da humanidade.

Sim, porque todos estamos sujeitos a pecar. Todos nós pecamos. Uns mais, outros menos. Uns ainda são escravos do pecado, mortos, incapazes de salvarem-se. Outros estão libertos da escravidão, mas ainda presos a um corpo que tende ao que é dessa vida.

Quem diz que não peca é mentiroso, atesta a Palavra de Deus.

Cristo fez mais ainda: disse que quem quebrasse um til da Lei seria julgado como se transgredisse toda a Lei.

A explicação de Cristo nos torna ainda mais dependente de Sua Graça. Não temos merecimento algum e, mesmo assim, fomos escolhidos para a Vida Eterna.

Vida Eterna não se perde, é bom que se diga. Quem a recebeu, a recebeu eternamente. Se não seria “vida temporária”.

E a Vida Eterna não é algo que se “ganha depois”, uma espécie de prêmio por bondades praticadas. Vida Eterna é um decreto de Deus, uma ordenação anterior à fundação dos séculos.

Deus, portanto, tem tanto apreço por aqueles que foram escolhidos que, como Verbo Encarnado, se sacrificou em holocausto para que nós ascendêssemos à eternidade.

Assim, a interpretação do verso em questão deve ser feita à luz do contexto bíblico. E o contexto bíblico é esse: existem ímpios, vasos de desonra, dignos do aborrecimento de Deus, e existem os escolhidos, dos quais Deus se agrada.

Evidentemente que o pecador justificado leva uma vida de forma constrangida. É assim que o Espírito Santo age. Sentimos que não temos a liberdade para fazer o que quisermos. A liberdade é aparente.

Paulo diria que aquilo que queremos fazer, não fazemos, e o que não deveríamos fazer, fazemos.

A diferença, nesse caso, é que o ímpio, com sua mente cauterizada, não se sente mal ao fazer o que é errado.

E assim o faz porque está distante da presença de Deus.

Daí extraímos que ser justificados nos traz prazer e dor. Prazer porque reconhecemos nossa sorte em ser encontrados pela Graça Divina. Dor porque nossa alma geme quando ainda está limitada pela natureza humana.

Concluindo: para Deus, a oração do ímpio é fonte de aborrecimento, mas Ele se compadece, por misericórdia, daqueles que são seus, lavados e legitimados pelo Sangue do Cordeiro.

É isso.

Instrução

Muito cuidado ao tentar salvar alguém. Certifique-se que saiba nadar bem.

Se não souber…

Na melhor das hipóteses, quem está se afogando pode se safar sem nenhum problema enquanto você desce calmamente em direção ao assoalho do rio.

Na pior das hipóteses, ambos morrem.